sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Leves escoriações



No Brasil, quem não é sobrenome é parente. Quem não é parente mente e prontamente se associa. Eternamente nos balançamos entre a elite e a contraelite; entre ser Ney e ser Nilo; entre Tancredo e trancado. Um exato alienígena com certeza confundiria a história do Brasil com história de trancoso. Dos mesmos é o gozo e dos sempre excluídos o engodo. Tudo Ré-publicamente se reparte entre aqueles que privadamente são a veríssima elite brasileira.
Hamletiana
Ser ou beber
Eis a questão.
Assim dizia
E assim bebia
Meu mau filósofo
Copo na mão.
Irresolvido
Se resolvia
Bebendo mais.
Filosofia
É um copo um dia
Hipocondria
Um copo a mais.

O panorama literário da província abre para o vazio. Tanta retórica, tanta frase de efeito, tantas donzelas e languidez, tanto subliterato sem caráter: tudo abrindo para o vazio. Esteticamente, sequer aportamos às margens do modernismo. Isso dá a medida extrema do que é ser subdesenvolvido dentro do subdesenvolvimento. Se as lâminas cortassem não a solidão, mas o insulto estético, decepariam a mão que as escreve. A alvorada brasílica migra da estrebaria para a academia. Quantos mitos sacrificará ainda este país para se libertar do impasse entre a farda e o fardão?
Market place
Quanto vale teu amor? Quanto o teu corpo, o teu ódio, tua paixão? Quanto o teu medo de não valer, ou valer pouco, tão demais pouco? Quanto o teu tédio, o teu emprego, o teu salário, teu coração? Quanto o teu método nessa loucura de que és louco? É tudo e pouco.
Liberation now
Como diria Luís Severiano Ribeiro, se acaso financiasse um filme de pornochanchada, sexo também é cultura. Mas de que sexo e de que cultura a gente está falando? Tomando o slogan de Luís Severiano a sério, o slogan e suas infinitas paráfrases e variações, sexo é cultura como cinema é cultura, esporte é cultura etc. Quer dizer, antropologicamente (doeu, meu amor?) tudo isso é expressão de cultura, como é expressão de cultura tudo que marca a nossa diferença com relação à natureza. Pois é exatamente nessa zona (abstraídos os significados menos decorosos), é nessa perturbadora zona da diferença entre natureza e cultura que nosso sexo, quero dizer, nossa cabeça, dança e balança.
Sendo de um lado natureza, naquilo que primariamente comporta de instinto, é o sexo de outro lado cultura naquilo que supõe conformação do instinto a um sistema de normas (leia repressão e lembre o que o velhinho Freud, chupitando seu impagável charuto, falou: civilização é repressão) que necessariamente amarram nossas práticas sexuais.
Já sei: minha cantada não funcionou. Tá na cara, tá na tua cara: minha cantada não funcionou. Posso tentar doutro modo? Por exemplo assim: vai nessa, menina. Sexo é uma coisa natural, absolutamente natural. Esses grilos, menina, esse papo de repressão, não vê que isso é coisa de intelectual enrustido, de nego que não tá com nada? Isso aí, cara: se libere numa boa, totalmente. Se liberou, né? Faz mal não: amanhã é dia de analista.
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Em poucos meses, operando essa espécie de milagre em que se esmera o Brasil brasileiro, transitamos da “Velha República” tecnoburocrática para a “Nova República” democracia de comissão. Já me explico. Qualquer das nossas autoridades que ascende a posições públicas eminentes, de ordinário lá chegando à força de expedientes escusos, logo toma a providência de constituir uma comissão de estudo. Há hoje no país comissão para tudo e solução para nada. Na ausência de projetos reais, toca-se o país à deriva de comissões muito bem comissionadas. Temos até um ministério que teve cultura sem cultor e agora enfim tem um cultor sem projeto de cultura. Nem te dão pão nem dentadura.

Eu me amei tanto, mas tanto, que não amei.

Entreouvido numa festa escandalosamente austera: fidelidade não é virtude, é privação.

Publicado no jornal O Rei da Notícia, no. 5, setembro, 1985.

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