segunda-feira, 1 de março de 2010
Microbiografia de Severo Machado
Já que doravante postarei neste blog alguns contos de Severo Machado, convém traçar-lhe com pincel grosso uma microbiografia que talvez concorra para torná-lo mais assimilável ao gosto ou pelo menos compreensão do leitor ocasional. É que Severo Machado, a simples menção do seu nome já me causa certo arrepio de rejeição, é demasiado negativo para os tempos publicitários em que vivemos. Costuma dizer que no Brasil é muito difícil ter caráter. Logo, decidiu pragmaticamente não ter nenhum. No entanto, ele em pessoa aparenta contradizer tudo o que escreve. Se nos contos é negativo, por vezes cruel, até brutal na visão e expressão da vida, convivido é um doce de pessoa, uma imagem afetuosa, alegre e até efusiva. Quando todavia digita um conto, Severo investe contra a realidade, contra os iludidos e fantasiosos, contra toda sorte de otimismo. Segundo ele, o otimista é apenas um pessimista mal informado. A definição é tão boa que duvido seja dele. Antropófago oswaldiano, Severo devora tudo que o fortalece. Logo, convém desconfiar da procedência de boutade tão engenhosa. Se parecer demasiado improvável ou imaginosa, sugiro que o leitor a coteje com a distinção proposta pela psicóloga Frieda Goldman Eisler entre o otimista e o pessimista: o primeiro foi amamentado por tempo prolongado, enquanto a amamentação do segundo foi prematuramente interrompida.
Severo é otimista enquanto ser de convívio, mas negativo enquanto escritor. Como explicar contradição tão desconcertante? Ele se explica culpando o Brasil, que vive como se fosse uma paixão inútil e insolúvel. Seu analista, Sugimundo Freuvo (favor pronunciar Froivo, pois é filho de um vienense que se perdeu no carnaval do Recife) inocenta o Brasil deslocando a causa da negatividade de Severo para sua biografia mais íntima, inconfessável e sobretudo inconsciente. Não fosse ela isso, inconsciente, como justificar os vinte anos de divã que Severo já pagou a seu analista? Para este, a raiz de tudo reside no romance familiar de Severo. Mal amado, para não dizer ignorado, pela mãe que o tratava como detento do presídio Anibal Bruno, Severo cedo aprendeu que o melhor lugar da casa era a rua. Não bastasse tanto, seu pai era doce e amoroso como se fosse sua mãe, enquanto a mãe era áspera e punitiva como os senhores de escravos nordestinos.
Infeliz como filho, Severo foi ainda mais infeliz no amor. Buscava nas mulheres a mãe que não teve. Encontrou apenas a namorada infiel ou a amada desalmada. Entre a família e o amor, ambos impossíveis, optou pelo curso de Direito (não confundir Direito com Justiça, com maiúsculas ou não) e acabou delegado de polícia num paraíso chamado Felicidade. Cansado de ganhar sem trabucar, trocou a delegacia pela literatura e logo descobriu que imaginar era melhor do que viver, que era mais fácil escrever contos do que reformar uma sociedade irreformável. Daí precisou de bem pouca imaginação para concluir que sua mãe, seu pai e todo seu retorcido romance familiar não passavam de produto de sua imaginação delirante. Por pouco não demitiu o Dr. Freuvo (que insiste na pronúncia alemã para que não o confundam com um frevo rasgado), a essa altura tão irreal quanto os fundamentos científicos da sua ciência.
Severo Machado era de esquerda quando todo mundo era de direita, ou pelo menos militante da maioria silenciosa. Agora Severo é de direita quando todo mundo não é nem uma coisa nem outra. Agora todo mundo é da maioria ruidosa. Não confundir ruído político, ou militância política, com ruído de festa, que é o que no presente se produz. No mato sem cachorro, que de caçador passou a caça privilegiada das mulheres, Severo refugiou-se no humanismo. Logo constatou que tudo que lhe restava era o humorismo, embora ninguém ache graça no que escreve. Consola-se afirmando que humor não é piada, isto é, Millôr não é chanchada.
E assim vai Severo pela vida. Castiga o Brasil através de personagens pavorosos, num extremo, ou carentes de compaixão, no outro extremo. O que intenta dizer em certas entrelinhas é que o Brasil é ingovernável e insolúvel. Embora afirme que o diz em certas entrelinhas, na verdade ele chega ocasionalmente ao extremo de dizê-lo nas próprias linhas dos seus contos. Já Dr. Freuvo pensa o contrário. Vai até mais longe, pois afirma que Severo tem cura. Basta continuar deitando no divã, desfiando sem pressa seu romance familiar. Um dia os conflitos se dissolvem, a luz da aurora pousa sobre o divã rangente de vendavais e terremotos familiares. Severo voltará para a vida e o Brasil com o ânimo e a visão de um brasileiro de sambódromo ou de Galo da Madrugada.
Severo espana a névoa da memória conturbada, salta num átimo dos labirintos da infância remota para a sala do analista e por pouco não estrangula Dr. Freuvo confundindo-o com a mãe que o abandonou. Mas civilização é repressão. Severo sabe disso, até porque, além de civilizado, é fiel leitor de Freud. Resta-nos agora conhecer aqui neste blog alguns dos seus contos, que hoje são reais. Já que costuma depreciar a inteligência do leitor, embora a dele esteja longe da imperfeição, Severo adverte o leitor desprevenido para as ressonâncias semânticas do trocadilho que vai dos contos aos reais. Não digo mais.
Nota – A foto que ilustra esta crônica é do carnaval de 2010. Severo define o carnaval como um estupro contra as normas da civilização. Sendo no entanto pernambucano, antes de tudo humano, Severo também cai na folia. Por conveniência, ou pura hipocrisia, ele se mascara para resguardar-se da opinião pública e da própria consciência. Como todo mundo, Severo paga sua cota de tributo à hipocrisia. Aliás, é tão hipócrita que ninguém tem como seguramente identificá-lo. Basta atentar para as máscaras sem rosto.
Fernando da Mota Lima
Recife, 12 de fevereiro de 2010.
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O machado severo de Severo Machado vai guilhotinar todos os pescoços de Pernambuco. Severo tem a truculência de Zoca Porrada com o inconformismo e senso de justiça de Robespierre. Ninguém escapa. Só Don Fernando.
ResponderExcluirCésar:
ResponderExcluiré sempre bom ter no blog notícias suas, no geral irreverentes ou provocativas. Não posso responder por Severo Machado, salvo ele próprio, que declara não responder nem oferta de emprego. Nem carta de amor, imagine! O que lhe posso anunciar é que ele vem por aí...Até sua cabeça rolará cortada pelo fio da guilhotina severina e severiana.
Fernando.