domingo, 28 de março de 2010

José Mindlin - Bibliofilia e Função Social


“Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita [esposa já falecida de Mindlin] éramos os guardiães destes livros que são um bem público”.

Conheci José Mindlin em Natal no ano de 1978. Fui assistir a uma palestra informal que proferiu sobre o Modernismo paulista num salão quase vazio da Universidade Federal do R. G. do Norte. Sensibilizaram-me, antes de tudo, seus modos isentos de qualquer afetação. Foi decerto isso o que me encorajou a procurá-lo ao final da palestra. Eu era então um professor pobre e desempregado, além de tímido. Depois de acolher-me afavelmente, conversamos um pouco sobre o Modernismo paulista. Falei-lhe de minha intenção de retornar a Recife para submeter-me à seleção de mestrado em sociologia no fim daquele ano. Inspirado na leitura apaixonada dos ensaios críticos de Mário de Andrade e Antonio Candido, tentava dar forma a um projeto passível de integrar a literatura à sociologia num trabalho de dissertação sobre o Modernismo.
Depois de ouvir-me com franco interesse, falou-me de periódicos que publicara quando de sua recente gestão à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo. Aludia precisamente a Klaxon, trincheira inaugural dos primeiros combates travados pela vanguarda modernista, e Terra Roxa...e outras terras. E logo prometeu enviar-me exemplar de ambos. Bastaria que lhe fornecesse meu endereço. Minha reação foi de surpresa e embaraço. Surpresa diante de tão espontânea generosidade; embaraço dado o fato de que, na minha pobreza, não dispunha então de endereço próprio. Fui salvo por Henfil, presente à conversa, que também generosamente se dispôs a receber os periódicos na sua casa situada num ponto central da Praia do Meio.

Encerrado o breve encontro, envergonho-me de dizer que duvidei da palavra de José Mindlin. Estava já tão afeito a esse nosso modo desleixado de prometer à toa, de prometer e logo esquecer, que logo duvidei daquele homem de modos tão simples e amáveis. Esses modos se traduziram ainda na delicadeza e sensibilidade com que tratou o público ralo que foi ouvi-lo falar do Modernismo. Ao constatar que bem pouco sabiam do assunto, logo cuidou de simplificar sua exposição detendo-se nos aspectos mais elementares e informativos da Semana de Arte e seus desdobramentos decisivos.

Dias mais tarde liguei para Henfil. Os periódicos já estavam à minha disposição. Apressei-me em recolhê-los e durante dias li e cuidadosamente folheei aqueles dois preciosos volumes restaurados em edição fac-similar. Li-os, portanto, tal como foram originalmente concebidos. Não bastasse tamanha riqueza, José Mindlin anexou ao volume trazido pelo correio um atencioso cartão autografado com palavras generosas. Anos mais tarde, escrita enfim minha dissertação de mestrado sobre Mário de Andrade e o Modernismo paulista, gravei na página de agradecimentos minha inesquecível dívida com José Mindlin. Durante o processo de redação do trabalho os dois periódicos constituíram fonte fundamental de esclarecimento e ilustração para muitos dos meus argumentos. Envergonha-me entretanto dizer que, novamente tomado pela timidez, nunca me atrevi a enviar-lhe uma cópia da página na qual registrei meu agradecimento.

Os anos passaram e ocasionalmente tinha notícia de José Mindlin através da mídia. Lia antes de tudo sobre sua bibliofilia, sobre essa paixão tão comovente e devoradora que fecundou toda sua longa existência. Mas importa frisar que sua bibliofilia não foi nunca sintoma de avareza consumista convertida em privatização mesquinha de bens. Pelo contrário, visou sempre, no culto de sua paixão que lhe custou tanto dinheiro e trabalho, visou sempre como fim último a funcionalidade social da sua biblioteca. Seu exemplo de bibliófilo movido por ideais socializantes guarda de resto afinidades evidentes com os ideais que também moveram a bibliofilia de Mário de Andrade. O fato que aqui ressalto foi muitas vezes declarado por ambos. A epígrafe deste artigo é disso prova suficiente.

À diferença dos que cultivam o livro e a leitura enquanto meros substitutivos da vida, à diferença dos que amam os livros porque renunciaram a amar o próprio semelhante (muitas vezes feridos por bem razoáveis motivos, admito), ambos destinaram suas bibliotecas privadas a instituições públicas. No caso, a grande beneficiária foi a Universidade de São Paulo. Tal como no caso de Mário de Andrade, José Mindlin precisou bater-se contra o labirinto burrocrático da nossa cultura cartorial e mesquinha para viabilizar um projeto no qual nossa suposta elite econômica e cultural deveria mirar-se, se nela houvesse um grão da grandeza que leio nas biografias de Mário de Andrade e José Mindlin. Os obstáculos contra os quais lutaram herdeiros de Mário de Andrade e o próprio José Mindlin ainda em vida para converterem duas das mais preciosas bibliotecas privadas do Brasil em bem público constitui mais um exemplo cabal de que neste país, até prova em contrário, somos todos suspeitos.

Há alguns anos José Mindlin veio à Fundação Joaquim Nabuco lançar No Mundo dos Livros, testemunho definitivo do seu amor aos livros. Seria afinal a oportunidade de pessoalmente lhe render agradecimentos e admiração. Quando cheguei, encontrei a sala inteiramente tomada pelo público. Mal consegui apertar-me de pé junto à porta. Não bastasse tanto, nenhum sinal do autor e dos que o acolheram em nome da instituição. Por fim, o público foi informado de que a cerimônia seria retardada ainda por algum tempo, pois José Mindlin estava visitando lugares pitorescos do Recife ciceroneado por representantes da Fundaj. E assim refiz meus passos de volta para casa sem jamais rever José Mindlin. Mas trouxe também comigo a memória de minha eterna gratidão. As raridades que me presenteou repousam na minha biblioteca, fiéis à memória de sua bibliofilia generosa, também fiéis a um momento fundamental da cultura brasileira. Enquanto existirem livros e bibliofilia, não tenho dúvida de que a memória de José Mindlin sobreviverá nos recônditos de alguma biblioteca, na solidão povoada de algum leitor ciente de que lemos, como escreveu William Nicholson, para saber que não estamos sozinhos.
Recife, 28 de março 2010 – um mês depois da morte de José Mindlin.

4 comentários:

  1. Belíssimo texto de reconhecimento. Mindlin foi um exemplo ao país e povo brasileiro. É uma pena que ao falarmos deste homem a maioria dos brasileiros não saibam quem foi. Mas se perguntarmos quem compôs "Eguinha pocotó" boa parte sabe.
    Adorei seu blog e, se me permite, serei seu seguidor.
    Blog de um Brasileiro

    ResponderExcluir
  2. Brasileiro:
    Já que você não me fornece outra identidade, resta-me apenas responder assim. Muito grato pela leitura, também por compartilhar minha admiração relativa a José Mindlin. Grato ainda por acrescentar seu nome à minha lista de seguidores. Tentei seguir seu rastro na Internet, como costumo fazer com todas as pessoas que conheço através do meu blog. Infelizmente, não consegui identificá-lo melhor.
    Fernando

    ResponderExcluir
  3. Ex-cudeiromarço 31, 2010

    Belo comentario sobre Mindlin, Don Fernando. Fez-me lembrar da bela página de agradecimento de sua dissertação de mestrado, que você, aliás, tanto maltrata. Diz você, nessa página, que uma determinada pessoa lhe ensinou que amor e medo eram irreconciliáveis. Aquela frase foi bastante impactante, e fez todo sentido para mim, que na época vivia uma situação onde o amor e o medo não podiam andar juntos de modo algum. Abraço

    ResponderExcluir
  4. Ex-cudeiro:
    Você bem sabe o quanto seus comentários importam para mim. Lembro-me perfeitamente da frase que você menciona acima, assim como da passagem conturbada da sua biografia implícita no comentário. Pena que Mindlin inspire tão pouco as direções e sentidos do nosso capitalismo selvagem. Grande abraço,
    Fernando.

    ResponderExcluir