quarta-feira, 24 de março de 2010

A Nudez do Escritor Tímido


O Amor nos Trópicos – A nudez do escritor tímido.
Severo Machado

Você nunca foi entrevistado antes. Por que agora?
Nunca fui convidado. Mais importante: recebo agora um convite para conceder uma entrevista paga.
Nenhum outro motivo?
Bem, talvez eu pudesse fazer minha a explicação de Inocência White depois de posar nua para uma revista consumida por mecânicos de automóveis: tirei a roupa apenas para humilhar minha timidez.
Cite um parágrafo que você jamais assinaria.
Faz mais de um século que o futuro pertence ao Brasil. Dado o papel crucial que desempenhou durante o processo de colonização, Pernambuco é o fundamento da nação, matriz da nossa identidade cultural. Por isso podemos com orgulho proclamar que Pernambuco fala para o mundo. Entre maravilhado e obediente, o mundo segue o roteiro traçado pela régua e o compasso pernambucanos.
Quem é o autor destas palavras?
Já esqueci, mas são muitos os que se orgulhariam de assumir a autoria desses disparates provincianos.
Por que você odeia tanto o Brasil e particularmente Pernambuco?
Meu ódio, se assim você prefere designar minha atitude de crítica intelectual ao Brasil, é fruto de um amor traído. Não leia aí nenhum paradoxo simplório baseado na natureza ambivalente dos sentimentos. O fato é que me fiz gente cultivando um amor ativo e crítico pelo Brasil. Por isso tentei, dentro de meus modestos limites, concorrer em algum grau para ver realizadas as mudanças coletivas passíveis de nos elevarem à dimensão de um país autenticamente moderno e democrático. Mas o Brasil deu nisso que você vê. De tanto apostar e perder, acabei reduzido ao estado de absoluta descrença em que me encontro. Em suma, acredito que o Brasil é incivilizável. Um amigo otimista costuma consolar-me, ou consolar-se, prevendo que daqui a cem anos seremos uma nação, não esse bordel cujo nome, aliás, teve como fonte uma mercadoria muito cobiçada. Sei que sou imortal, mas infelizmente minha paciência é finita.
Embora no geral situados no ambiente de Recife, seus personagens e a ação dos seus contos poderiam ser deslocados para qualquer outro lugar. Concorda?
É uma observação precisa. De fato, não me passa pela cabeça acrescentar aos personagens e às situações que vivem qualquer traço de natureza regionalista, qualquer particularismo passível de anular a especificidade histórica implícita na minha ficção.
Como você caracterizaria essa especificidade histórica?
Diria que grosseiramente meus personagens e os conflitos que vivem são fruto das transformações que em graus variáveis afetaram o conjunto das sociedades ocidentais. Somos periféricos, mas ocidentais. Personagens como Luiz Natalino, Sérgio Majo e Inocência White, por exemplo, seriam inconcebíveis dissociados das mudanças ao mesmo tempo liberadoras e devastadoras gestadas sobretudo a partir dos anos 1960. Nossas fixações regionalistas, feitas de idealizações retrógradas e fantasias de identidade cultural, passam inteiramente ao largo dessa realidade. Minha ficção nada tem a ver com o canavial do coronel ou com o batuque folclórico da escravaria de ioiô.
Não há aí um laivo de elitismo, a traição do seu desprezo pelo povo?
Não desprezo o povo, mas a mentalidade predadora e parasitária das elites brasileiras.
Se não há traição ao povo, não haveria traição à sua experiência de pernambucano na literatura que você escreve?
Não sei bem o que você quer dizer quando se refere à minha experiência de pernambucano. Passei parte da minha adolescência murado num buraco ainda mais fundo do que o buraco que é o nosso mundo rural. Sabe no entanto que autores li emprestados da estante do meu tio? Alexandre Dumas, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Robert Louis Stevenson, Thomas Hardy, Oscar Wilde, Balzac, Flaubert... Música? The Beatles, Rita Pavone, Roberto Carlos, Nat King Cole... Cinema? O de Hollywood, os filmes italianos, os seriados... O que isso tem a ver com nossa suposta identidade pernambucana? Se na minha juventude era assim, o que dizer hoje?
Você escreveu um conto intitulado Estupro Social. Você justifica o estupro apoiado em razões sociológicas? Estupraria uma mulher?
Como entendo que meu conto não é a demonstração de uma tese sociológica, acho que cabe ao leitor refletir sobre a primeira parte da sua pergunta interpretando livremente o conto. Quanto à segunda parte da questão, diria que não estupraria, mas confesso que já estuprei uma mulher quando eu tinha quinze anos. Era uma negra bonita emudecida pela opressão. Usei-a à força sem sequer saber então o que era estupro. Estava apenas repisando uma prática corrente no mundo rural nordestino e nas famílias de classe média do Recife. É claro que a inconsciência do crime não inocenta o criminoso. Sexo livre entre namorados adolescentes é uma outra invenção recente. No tempo da minha adolescência a gente se iniciava nos quartos das empregadas domésticas ou nos puteiros imundos.
Você não é impiedoso diante da miséria suportada pelo povo brasileiro?
You must be cruel in order to be kind.
E a política?
Já que desistimos de cuidar dela, hoje ela cuida de nós sem maiores embaraços. O resultado está aí à vista. Inútil comprar um kit de sobrevivência mínima cujos itens podem ir do analista ao exterminador ou justiçador a serviço da vítima desamparada pelo Estado. Reiterando uma obviedade que o medo não vê, se o mal com o mal se paga, o resultado não é soma zero, mas a multiplicação incalculável do mal.
E a literatura no mundo atual?
É irrelevante. Figura ainda nas chamadas revistas de cultura porque reduzida a turismo cultural. Ou manual de auto-ajuda. Ou variante de fofoca nas colunas sociais.
Por que então você insiste em escrever? Vaidade?
Não há vaidade que sobreviva à recepção de dez leitores descontentes. Escrevo porque a experiência de recriação literária da realidade concorre para que me compreenda melhor a mim e ao mundo em que vivo.
Uma frase que você gravaria no pára-brisa do seu carro ou no seu túmulo.
É de Alan Bennett, um dramaturgo inglês: I´ll tell you something. Heaven is going to be hell.
Você concordaria que a frase acima condensa todo o pessimismo da sua literatura?
Não. Por quê? Ora, porque minha literatura não é pessimista. O que escrevo é apenas uma reinvenção – ora realista, ora satírica ou ainda satírico-realista – da realidade que vivo e observo. Se você lê pessimismo no que escrevo, ele é um ingrediente substancial da realidade, não uma projeção negativa da minha percepção do mundo. É porém verdade que nossa expressão imaginária da realidade radica na concepção que temos da literatura. Se um escritor a concebe como mera via de fuga da realidade, uma variante da cocaína consentida que embrutece a sensibilidade e a percepção das pessoas, é provável que ele produza uma obra adequada ao consumo dos órfãos da evasão. Entendo que a literatura é uma via singular e privilegiada de conhecimento do mundo. Somo a essa função cognoscitiva uma outra que Freud identifica como manifestação do princípio de prazer. A forma estética corresponde a esta segunda função.
Apesar da discordância, insisto em dizer que a sua literatura é negativa. Por que a escuridão compreendida como metáfora não freqüenta sua obra? Quero dizer, a escuridão traduzindo sua representação sombria e opressiva do mundo, o sofrimento ou alienação a que parecem condenados seus personagens.
Porque, insisto do meu lado, minha literatura não é pessimista. Aprecio a escuridão literalmente compreendida. Afeiçoei-me a ela desde a infância. Talvez porque cresci em noites envoltas numa escuridão completa, apenas rompida em alguns pontos pela luz das velas e dos candeeiros. Não esqueça de que no Nordeste o progresso material é recente e restrito. Some a este fato uma renitente doença dos olhos que me forçava a viver encerrado num quarto escuro, mesmo à luz do dia, com um grosso tecido preto protegendo-me a visão. Talvez essas circunstâncias tenham concorrido para agravar minha timidez. Assim, associo à escuridão sentidos simbólicos bem distintos e até opostos aos sentidos correntes nas representações metafóricas da realidade. Para mim a escuridão traduz reserva, recolhimento, concentração do vivido e experimentado. Trepar no escuro, por exemplo, é algo que anima e libera minha imaginação e meus sentidos. No escuro você tem a liberdade de descobrir e mesmo reinventar o corpo da mulher. Essa coisa de trepar dentro de uma torrente de luzes, como fazem tantos casais freqüentadores de motéis, é compulsão de amantes exibicionistas. A luz do amor, mais que a da mera e vulgar trepada, irradia da escuridão, não dessa vitrine narcisista que define a banalidade do nosso tempo. Aliás, irradia mas também naufraga. Por isso, é no escuro que sofro e curo o amor perdido.
Você não é acaso narcisista?
Claro que sou. Mas pareço discreto e humilde se me comparo com a minha faxineira ou com o porteiro do meu condomínio.
Como traçar a fronteira entre a biografia e a ficção na sua obra?
Você indaga sobre esferas intercomunicantes, mas autônomas. É um despropósito, para não dizer rematada tolice, confundir o autor com a sua obra, ou seus personagens. Um tolo ou maledicente confundiu-me com meu personagem Luiz Natalino. Daí passou a acusar-me da prática da pedofilia. Voltando à natureza intercomunicante mas autônoma da realidade e da ficção, não negaria que o personagem contém muito de mim. Daí a presumir que sou pedófilo vai a distância imensurável entre a obra e a fantasia que o autor nela projeta. Bastaria dizer que o próprio nome do personagem, Luiz Natalino, é já um artifício literário indiciador do papel da pedofilia na tradição literária ocidental.
Que medos oprimiam sua infância, se você sequer temia a escuridão?
Meu grande medo era cogitar um mundo sem meu pai regendo-lhe o centro. O único mundo cogitável obedecia ao comando do meu pai movendo-lhe as forças com sua potência protetora. Tive aos nove anos um pesadelo no qual via meu pai morto de maneira brutal. Acordei chorando, completamente desamparado. Precisei de horas, dentro da escuridão vazia, para reatar o mundo a uma fonte de sentido passível de devolver-me o sono.
Você acredita em Deus?
Não. Também não acredito mais no meu pai.
Em que acredita então?
Na dúvida.
É possível tolerar nossa vida individual regida pela dúvida?
Penso que sim. A aprendizagem é longa e tormentosa, mas alguns se libertam da rede de crenças ilusórias que escoram nosso medo e o vazio flutuando à borda do abismo. Não esqueça de que as mais terríveis atrocidades produzidas pela história humana são fruto de alguma crença, alguma convicção cega e poderosa, algum sistema de fé. A crença, transformadora ou reativa, convertida em energia de ação social, tem sido a grande geradora de devastação da humanidade e do mundo natural. O mal que causei a este mundo derivou quase sempre do impulso vindo de alguma fé consciente ou obscura. Seríamos mais livres e menos destrutivos se aprendêssemos o dom da dúvida liberadora.
E sua mãe?
Foi uma ausência quase absoluta. Quero dizer: ausência física. Simbolicamente, ela vive e viverá em mim até o fim de tudo. Talvez seja isso uma condenação, mas o fato é que nunca nos libertamos daqueles que amamos. Pai e mãe, sabemos, são os modelos primários dessa aventura amorosa, quase sempre desastrosa.
Você gosta de bater?
Você gosta de apanhar?
Você gosta de mulher?
Nua ou vestida?
Você se identifica com o seu nome?
Não. Na verdade, detesto chamar-me Severo Machado. Preferiria ser Machado de Assis, Henry James, Joseph Conrad. Mas que fazer, se a crítica tem sempre a vista curta?
Há quem diga que você é uma pessoa cruel.
Sou tão inofensivo como uma flor silvestre. Lembra a última fala de Norman Bates em Psicose, já possuído pelo espírito atormentador da mãe? Pois digo o mesmo de mim: sou incapaz de fazer mal a uma mosca.
Como gostaria de concluir a entrevista?
À maneira de Brás Cubas: Não tive filhos. Não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria.
Assim encerramos a entrevista e assim perdi de vista o repórter cujo nome esqueci. Soube que uma semana mais tarde a entrevista foi publicada. Ou melhor, mutilada, tantos foram os esquartejamentos a que a submeteu o editor. Devo-lhe o crédito de render-me alguma atenção ao comunicar-me, via e-mail, a operação destrutiva imposta à entrevista. Alegou a inocência dos que matam porque recebem ordem para matar. Estava apenas pondo em prática normas editoriais adotadas em benefício do leitor. Mais uma razão, pensei, para evitar a leitura de revistas de cultura. Tive a tentação de conferir minha fala com o texto. Logo porém mudei de idéia assombrado pela possibilidade de tropeçar num monstro que não me saiu das entranhas. Seria um tormento que tive a prudência de neutralizar. Achei assim oportuno tomar a entrevista como lida e aprovada. Afinal, o que mais importava era o pagamento da entrevista cumprido, ressalto por dever de justiça, segundo as normas do mercado. Um dia, suspirei contando as cédulas magras, universalizaremos no Brasil as práticas do capitalismo de mercado. Será enfim o progresso que prossegue tremulando em vão na divisa da nossa amada bandeira nacional.
Dias mais tarde cruzei no Parque da Jaqueira com um jornalista amigo. Falou-me da entrevista, concordou com tudo que desmentiria na primeira curva do parque, bastando que se visse livre da minha presença indesejável. Ia já a caminho de fazê-lo quando alguma lembrança o deteve. Voltou-se para mim e falou quase que aos gritos: Ah, esqueci de lhe dizer que seu entrevistador suicidou-se anteontem. Aliás, seu amigo Perfídio Ventura anda espalhando que o suicídio foi de fato um homicídio. Cândido como o personagem de Voltaire, cedi à tentação da curiosidade: a quem atribui a autoria do homicídio? À sua entrevista.
Ri vexado e retomei meu passo. Embora quisesse esquecê-lo, Perfídio Ventura e sua verve maledicente vibravam-me nos ouvidos. O canalha anda por aí acusando-me de assassinar um jovem que no fundo estimei, embora deva acentuar que a entrevista foi uma lição de incompreensão comovente, ou de desacordos comprimidos no ritual de hipocrisia caracterizador das formas de relação política, no caso a literária. Sigo batendo perna pelo Parque da Jaqueira, tão importunado pela maledicência de Perfídio Ventura que me abstraio das mulheres gostosas movendo-se na vitrine da pista onde andam, correm e sobretudo fofocam. O canalha anda espalhando que matei o repórter com a minha entrevista. Quem me dera esse poder...

2 comentários:

  1. Querido Severo,
    Também lamento que essa entrevista, ou melhor, sua literatura não tenha assim um poder tão imediato rsrsrs. Me divertiria um bocado se Pedro Bial se matasse por conta de uma entrevista assim rsrsrs!!!. Querido, é muito bom investigar novos mundos que sua literatura proporciona!!
    Abraços,
    Cecília.

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  2. Querida Ceci:
    Muito grato pelo comentário divertido. Quando penso em certos entrevistadores e repórteres da mídia,lamento de fato que uma entrevista de Severo Machado não tenha o poder aniquilidador registrado no conto.
    Fernando.

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