quarta-feira, 10 de março de 2010

Somos Todos Suspeitos



Somos Todos Suspeitos
Severo Machado

Gosto de mulher morena, rabuda e safada. Meu amigo Antonio Senile fica chocado quando lhe digo isso. Senile é autor de uma frase decisiva para que me tornasse seu amigo. Disse que os amigos verdadeiros compartilham um segredo: o privilégio da intimidade. Nesta, na intimidade desatada das convenções hipócritas de toda ordem social, somos como somos. Pelo menos na medida em que o podemos ser. Segredo ou dom, depois disso aprendi a identificar e definir um amigo. Aliás, tenho apenas um: Antonio Senile. O amigo é aquele com quem comungamos o privilégio da intimidade. Senile, que pode ser uma flor de pessoa, me confessa horrores que jamais ousaria confessar no confessionário. Digamos melhor: no divã da analista, pois Senile, como eu, é ateu.

Senile é um lírico da carne. Tem um forte por mulher, como eu. Por que forte? Porque a carne não é fraca, e sim forte. Esta eu roubei de Luciano Oliveira, outro amigo de Senile. Aliás, dizem que ele a roubou de Boris Pasternak e este de quem? Nada de novo sob o sol, já observava sabiamente o autor do Eclesiastes. Logo, somos todos ladrões.

Negativo como uma noite escura assaltada por trovoadas, Senile é no entanto afortunado o suficiente para dizer com convicção que tem dois amigos: Luciano Oliveira e eu. Tenho apenas Senile, que é já demais. A maioria das pessoas não tem ninguém, embora tantos tolamente se iludam confundindo amizade com bloco de carnaval, corporação de corruptos, site de relacionamento. Senile é um lírico da carne. Daí chocar-se quando digo que gosto de mulher morena, rabuda e safada. Senile escreve ainda soneto de amor para as mulheres que quer levar para a cama. Soneto com decassílabo rimado e chave de ouro. A um amigo perdoamos tudo, até isso.

Ligou quando eu estava de saída para o trabalho. Doente, como previ. Senile é mais hipocondríaco que eu. A doença nele é sintoma narcisista. Assim retém a atenção dos amigos, antes de tudo de si próprio. Foi o diagnóstico da analista para quem transfere renda isenta de imposto há doze anos. Jamais cairia nessa. Além de não acreditar em psicanálise, a analista é morena, rabuda e tem jeito de safada. Minha transferência logo seria assédio sexual. Curto circuito na teoria da fala. Senile é lírico. Por isso continua falando no divã, transferindo pulsões, desejos e sobretudo renda para a analista morena, rabuda e safada. Quando o assunto é sexo, ser e parecer se confundem na minha imaginação. Logo, se ela parece safada, é safada.

Senile queria um favor. É nisso que dá ter amigo. Pediu-me para recolher em seu nome, numa loja de produtos promocionais, uma sacola de notebook. A que usava, comprada na tal loja, rompeu a costura depois de dois meses de uso. Porcaria. Senile foi à loja, reclamou do produto e exigiu a troca devida. Foi surpreendemente bem atendido, pois sequer levou a nota de compra. Como o produto estava em falta, a atendente prometeu entregar-lhe uma sacola nova tão logo chegasse nova remessa. Cumpriu a promessa, dias mais tarde, ligando para Senile, que combinou proceder à troca na semana seguinte. Mas adoeceu no entretempo e recolheu-se ao divã. O doméstico, não o que desejaria, o da sua analista.

“Procure Sueli. Ela lhe entregará a sacola nova”. Esse nome mágico, prenhe de odor e carne, logo produziu um milagre na minha imaginação, tanto que esqueci a chateação do favor para o amigo e me apressei em atendê-lo. A mera enunciação deste nome Sueli abre-me nas janelas da imaginação um sopro de bordel e nudez. Logo vislumbro um corpo moreno, rabudo e safado deslizando dentro da penumbra de uma buate enevoada por fumaça de cigarro e odor de suor e perfume barato. Eu seria um divã cheio para a analista de Senile.

Cheguei suado e ofegante. Ao longo do trajeto, dirigindo ansioso, figurava o corpo de Sueli como o da mulher bandida de Double Indemnity, que algum tradutor idiota converteu em Pacto de Sangue. Quem identifica na trama do filme de Billy Wilder um pacto de sangue nada sabe do sexo e de outras forças sombrias da natureza humana. Sueli não era exatamente o que figurei na minha imaginação doentia, mas era morena, rabuda e safada. Não era uma mulher, era um filme noir. Quando vejo uma mulher como Sueli, logo me torno um bandido de filme noir. O leitor dirá que isso é um efeito literário previsível e barato. Que posso fazer? Dou-lhe o endereço da loja para que confira com os próprios olhos. Antes de tudo, com a minha imaginação. Se tiver a imaginação de Senile, talvez rabisque um soneto qualquer, com decassílabos rimados e chave de ouro. Sueli não merece nem quer isso.

Recusou-se a entregar-me a sacola de Senile. Balbuciou desculpas, alegou que Senile fora atendido por outra pessoa, que não a autorizara a entregar encomenda nenhuma. Mas recusava a sacola enquanto prometia outra coisa. Desde quando entrei, percebeu meu olhar despindo-a da cabeça aos pés, tanto que se sentou encabulada e cruzou as pernas, gesto que alargou o campo iluminado das coxas apertadas na saia justa.
Perguntei se não gostaria de jantar comigo num restaurante do Shopping Boa Viagem. Odeio shopping. Odeio sobretudo o Shopping Boa Viagem, mas por uma mulher como Sueli um homem fraco como eu (quero dizer, forte) faz qualquer sacrifício. Ela topou, mas não confiou entregar-me a sacola de Senile. Na cama do motel, depois de um jantar regado a vinho tinto e muita fantasia emporcalhada, pois tenho um fraco (i.e, um forte) por fantasias sujas quando estou com mulher, pior ainda quando penso em mulher, ela me confessou candidamente: “Te dei meu corpo, safado, mas não te dei a sacola do professor. Por quê? Ora, porque fui treinada assim pela dona da loja. Ela me ensinou desde meu primeiro dia de trabalho: Não confie em nenhum cliente, Sueli. No Brasil, até prova em contrário, todos são suspeitos”.

Um comentário:

  1. Walker Limaabril 20, 2011

    Suspeito que a crônica é da lavra de Nelson Rodrigues...Me lembrei não sei porque do filme "Ladri di Bicicletti" ao referir que "somos todos ladrões" talvez pelo elementar e humano que o ato traz consigo... Certo mesmo sob bilhões de astros, nenhuma novidade. Parabéns Fernandão

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