domingo, 7 de março de 2010

Sem Medo de Ser Feliz


O Amor nos Trópicos - Sem medo de ser feliz.
Severo Machado

Certo filósofo observou que uma das atitudes humanas mais insensatas consiste na ilusão da felicidade. Deitando fel no prato dos otimistas, concluía que não estamos neste vale de inadimplentes para ser felizes. Inocência White, a heroína deste conto, ouviu porém outra voz ou eco. Traída pelo ouvido, antes que traída pela vida, não sabia se a frase viera do Céu ou de algum publicitário. Sabia apenas que dizia: sem medo de ser feliz. Se veio do Céu, veio acrescida do número da conta bancária de Deus, na qual o crente deve fielmente depositar sua contribuição para a bem-aventurança dos pastores e ministros religiosos deste mundo.

Mas o assunto da nossa heroína, não confundir com outra coisa, é a busca da felicidade através do amor. Como a grande malandragem da indústria publicitária é induzir nos tolos a fome e a vontade de comer, Inocência passou a ouvir e a sonhar em tudo a frase sedutora. Sem medo de ser feliz, ela mordeu a corda de Luiz Natalino, o pedófilo. Mal caíra na vida, ou nos doze anos, e logo ele entrou e se foi encostando e instalando nos vazios largados pelo pai biológico que ela mal conheceu na infância. Seguindo-a com sinuosidades de pai amoroso, ambos libertos do interdito do incesto, Natalino foi entrando sem bater, mas também sem forçar. Enquanto com a mão sábia soprava promessas irrealizáveis, com a boba media a temperatura exaltada entre as coxas de Inocência. Adeus virgindade e outras campinas, adeus concha ferida da adolescência. Luiz logo sumiu, pois a carne muda e as meninas são tantas para tão curta vida.

No rastro dele logo veio Sérgio Majo, astro da televisão cuja função era atrair a garotada para os castelos de fumaça do consumo e da futilidade precoce. Sérgio nasceu em Serra Talhada, mas logo trocou o sobrenome de batismo, Pereira, pelo espanhol Majo, que melhor atende à persona que projetou na mídia. E ela foi e cedeu e se perdeu como perdia o ônibus de subúrbio nas manhãs de ressaca. Tantas ele fez, Sérgio Majo, antes e depois de Inocência White, que um dia o escândalo estourou. Sendo astro da mídia, Sérgio era notícia de alta cotação no mercado do consumo. Mas a mão limpa da impunidade, privilégio de classe no Brasil cordial, lavou a mão suja do escândalo e Majo voltou a desfrutar da fama garantida pela telinha mágica e das gatinhas que dão tudo sem medo de serem felizes.

De Sérgio Majo para Sílvio Inocêncio, o publicitário, a passada foi mais curta do que a brecha entre duas camas conjugadas. Mal deu por si, ainda esfregando os olhos vindos de uma noitada na Rua da Moeda, Inocência se viu nua e devassada na cama de Sílvio. Com o mesmo furor com que, quando de pileque, caçava uma mulher para a cama, Inocêncio a repelia ao acordar de ressaca e vê-la abandonada a seu lado. Com Inocência, porém, ele jogou o jogo da caça e da repulsa durante várias semanas. Foi o bastante para que ela cegamente concluísse: ele me ama e portanto posso com ele juntar meu destemor ao desejo de ser feliz. Mal teve tempo de contar as semanas, que ele esquecia, e ei-la novamente sem muleta.

A vida passa, a vida passa, e a cama alheia é uma roleta. Inocência seguiu jogando à deriva pelas noites de Recife. O jogo de ocasião e sem aderência humana que não fosse o mero gozo fugaz da carne, esse jogo ela jogou num transe de desmemória e vazio. Tanto o jogou e perdeu que um dia, voltando um olhar assustado para dentro de si, viu apenas um descampado, duas árvores ressequidas, sombras voláteis que a possuíam sem lhe marcarem a epiderme com um nome, um gesto de reconhecimento, um eco de palavra repartida no desafogo do ranger de camas.

Vou chamar você de Censinha, disse Tãozinho do Pandeiro enquanto alisava Inocência em meio aos lençóis revirados. Ai, pára de me chamar assim. Odeio meu nome, odeio essa coisa de brasileiro falando inho pra um lado, inha pra outro. A única coisa que amo no meu nome é o sobrenome: White. De onde vem, perguntou Tãozinho. Ah, suspirou ela, vem do meu pai Joe White, um americano de Nova Orleans. Como conheceu tua mãe? Foi num carnaval de Olinda. Depois, quando eu cresci, minha mãe falou que ele prometeu voltar antes de partir. Até hoje eu espero. Mas sei que um dia meu pai virá e então partirei com ele para os Estados Unidos. Vou ser feliz em Miami ou Nova York. Juro que nunca mais volto. Nunca mais esse povo atrasado, essa merda de terceiro mundo. Tãozinho: baixa a crista, vagabunda. Que merda tu pensa que é, porra? Inocência saiu na pancada, dando nó corrido na roupa rasgada, e foi parar no Hospital da Restauração.

E as águas se foram rolando sujas sob as pontes sem que Inocência cedesse um milímetro na ilusão cega de ser feliz. Foi por aí tropeçando, errando entre o bar e a cama, feliz como um clipe publicitário. Os homens vinham e passavam e as promessas de amor, cada vez mais frouxas, se dissolviam na neutralidade da carne votada ao gozo sem conseqüências. O poço foi gradualmente se abrindo, Inocência afundando como uma lata vazia presa a uma corda roída pela ação do tempo e do manuseio indiferente. Estava um dia lá no fundo, catando água para embriagar-se, quando uma mão firme puxou-a para o alto e lhe abriu a porta da casa de subúrbio. E assim foi ficando e gostando de ficar. A mão firme era parte de um corpo áspero onde ressoava uma voz dura e alta como um bater de martelo. E tudo isso, essa estranha promessa de felicidade e aconchego doméstico se condensava na identidade de um nome arrepiante: Zoca Porrada.

Ai, como ele me bate. Mas sei que bate por amor. Acho que é o modo dele, o único que aprendeu pra dizer que me ama. Também acho que é um jeito que ele precisou aprender dentro do duro exercício da profissão. Todo dia meu Zoca se arrisca nas ruas sujas e estreitas, na lama dos subúrbios, nos morros onde a droga e o crime rolam a toda hora. Zoca é forte e precisa ser forte pra segurar a barra da vida cega para essa chama azul da felicidade que somente eu vejo e somente a mim me queima. Por isso respiro felicidade em tudo e ela me embriaga nas noites sujas em que Zoca chega dando pontapé na porta e me quebra com a mesma brutalidade com que arrebenta pratos e o resto de louça usada da cozinha. Depois, cansado de lutar contra a vida e de me maltratar por amor, ele cai pesadamente na cama e ronca feito um porco pacificado. Então me deito a seu lado e, apesar do corpo e da alma feridas, eu fecho os olhos em estado de serena beatitude.
Lá no fundo da escuridão em que mergulho e me recolho vejo um paraíso de luzes brilhando, homens e mulheres lindos, de uma beleza assim grande me tirando o sono, e todos vivem no gozo e na felicidade para sempre. Sei bem do que estou falando, sei bem do lugar e das pessoas maravilhosas que habitam a escuridão iluminada dos meus olhos fechados ao lado de Zoca e seu ronco, de Zoca e seu cheiro de cebola crua. Esse mundo de sonho, que entanto é pura realidade, é a ilha da revista Caras, é o paraíso dos meus deuses que venero e invejo quando me sento na cadeira da cabeleireira do bairro. Um dia eu chego lá. Sem medo de ser feliz.

2 comentários:

  1. Pois é meu caro, que louca é essa nossa vida!!!. O jogo da caça e da repulsa, as MARAVILHAS da Ilha de Caras e a busca por esta inalcançável felicidade... Inevitável é o vazio, inevitável é o soco no estômago dado pelo desconhecido que habita em cada um de nós, igualzinho ao soco de Zoca...
    Belíssimo texto!!
    Abraços,
    Cecília.

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  2. Ceci:
    Muito grato pela nova leitura e comentário. Bom saber que você gostou do texto. Confesso sentir profundo desacordo com essa realidade, tão profundo que imaginei um pseudônimo, ou eu falso ou literário, para escrever sobre essas coisas que nada tem a ver com a minha vida. Refiro-me, claro, a Severo Machado.
    Fernando.

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