sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Salinger e a Fobia à Celebridade



Salinger morreu há poucos dias. Embora romancista lendário, morreu com a discrição com que viveu em estado de olímpico isolamento durante décadas. Salinger foi a Greta Garbo da literatura. Este fato talvez tenha concorrido mais que qualquer outro para convertê-lo numa lenda literária inacessível aos abutres que espoliam a celebridade com a voracidade de um cafetão de ninfeta. A lenda que perdurou até sua morte, e agora com certeza gradualmente se dissipará, foi nutrida pela coerência tenaz com que, tal como Greta Garbo, preservou-se do público em estado de absoluto isolamento. Ironicamente, numa cultura regida pelo valor supremo da celebridade perseguida a qualquer custo, ironicamente é esta uma das armas mais eficazes para que se alcance a celebridade recusada. Quero dizer, o isolamento confesso e tenaz de Greta Garbo e Salinger conferiu-lhes uma aura de celebridade excêntrica bem mais poderosa e duradoura do que a dos célebres que se deleitam na exposição da fama.

Literariamente, foi graças à publicação de um romance que Salinger foi elevado à invejável condição de escritor célebre, objeto de um culto que atravessou incólume toda a sua vida. O romance, que todo mundo conhece, ainda que não o tenha lido, é O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye). Desde sua publicação, em 1951, o romance constitui uma evidência insólita de popularidade inalterável. Como tantos outros adolescentes viciados em literatura, li-o fascinado pelo culto que o cercava. Confesso que me decepcionou, tanto que me escapam argumentos esteticamente convincentes para justificar-lhe a fama. Talvez o erro fosse da minha percepção de leitor adolescente. Seja ou não este o motivo, estou muito velho e tomado por outras prioridades de leitura para ocupar-me em reler o romance de Salinger. Fixo-me assim na consideração de sua fobia à celebridade.

Confesso que o que mais me inspira admiração na biografia de Salinger é esse traço singular e tenaz de fobia à celebridade. Mais que admiração, ele me inspira inveja. Embora me meça, na minha obscuridade de autor de blog, como um amador desambicioso da literatura, seria hipócrita se acaso afirmasse que não dou importância ao fato de me lerem ou não. Pois a verdade é que eu, como de resto todo escritor profissional ou amador que conheço, eu preciso de que me leiam, preciso de que me concedam reconhecimento. Como escreveu meu poeta supremo,“ preciso de todos”. E notem que era um modelo de timidez e discrição. Aludo, claro, a Drummond, neste e em tantos outros sentidos o anti-Vinícius de Moraes.

À parte o exemplo de Salinger, cuja coerência sustentada durante décadas parece-me constituir evidência suficiente de sua aversão ou indiferença ao público, não sei de nenhum escritor que não aspire ao reconhecimento do leitor. Ainda quando autenticamente modesto, ainda quando avesso à fama, se é que se pode aludir à fama literária num pais onde tão pouco se lê, todo autor quer evidentemente ser lido. Do contrário, como explicar o fato de que se exponha em livro, jornal, revista, blog...? Aparentemente, apenas Salinger pairava indiferente ao desejo da celebridade literária, ou pelo menos ao desejo do reconhecimento literário. Mas ainda aqui caberia indagar: se não dava nenhuma importância ao público, se confessadamente encontrava no ato de escrever satisfação suficiente, por que então publicou outros livros depois que se devotou integralmente à vida reclusa?

Segundo uma anedota célebre, Kafka, pouco antes de morrer, pediu a seu fiel amigo Max Brod que queimasse seus escritos. Nunca levei a sério esta anedota. Elementar, meu caro Brod: se Kafka queria de fato queimar seus escritos, por que não o fez ele próprio? Variando o exemplo de humildade ou desapreço inconsistente com uma alusão biográfica, tenho um amigo que cultivou durante toda a vida esse mito da indiferença pela publicação, a indiferença pelo público. No entanto, além de narcisista consumado, um dos mais extremados e sedutores que conheci na sua expressão singular de narcisismo, modelou com astúcia e cálculo engenhoso toda uma mitologia à volta da sua obscuridade voluntária. Não bastasse tanto, cuidou de zelosamente datilografar e encadernar toda a obra que escreveu. Assim, convém que não me engane eu a mim nem muito menos eu ao suposto leitor desta crônica. Todos nós que escrevemos, ainda o mais sinceramente humilde, aspiramos no mínimo ao reconhecimento do leitor improvável, mas sempre desejado. Para além da rotineira vaidade humana, pulsa em cada ser que escreve o desejo, diria mesmo a necessidade de comunicação expressa em forma literária, talvez a mais alta forma de expressão e comunicação humana.
Fevereiro de 2010.

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