quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Boiação e Ruminação


O homem nasceu para boiar. Imagino o homem em estado primitivo, anterior a esse espantoso acervo de invenções e desenvolvimentos que se chama civilização ocidental. Vivendo então suspenso entre as águas paradas e a sombra das mangueiras, o homem prazerosamente descansava como uma força inútil da natureza. Sua felicidade primária, derivante dessa espontânea integração no seio dos elementos, exprimia-se no enlace concordante entre desejo e satisfação, entre a pobreza da imaginação desejante e a realização efetiva do desejo imaginado.
Alguns, de propensão mais filosófica, inscreviam na paisagem remota da natureza aquele ideal de repousada contemplação expresso num poema de Drummond: Um boi vê os homens. Ao invés de correrem sem saber para onde, de acumularem sem noção realizada de propósito e felicidade, como hoje inconscientemente procedemos, deixavam-se quietamente ruminando a vida isentos da aspiração de qualquer coisa que se pusesse além do sábio exercício da ruminação, além do sábio exercício da boiação. Repito: se nele houvesse alguma vocação para a sabedoria, o homem viveria boiando, ou ruminando no pasto como o sábio boi de Drummond. Os estóicos traduzem esse estado ideal de serenidade e harmonia dentro do mundo com uma palavra que venero: ataraxia. Julgo não trair o sentido essencial deste termo traduzindo-o como imperturbabilidade do espírito. Hoje o ideal dominante de felicidade aparenta confundir-se com o estado de perturbação do espírito, um estado de permanente tensão, ou movimento sem propósito.
Já que me entrego a uma representação puramente mítica da nossa condição, ou da condição que poderia ser a nossa, prendo-me ainda à argumentação mítica lembrando que o fator de ruptura dessa ordem de harmonia primária intervém com a figura mítica de Mefistófeles. Seduzido pela magnitude das possibilidades que este lhe descortina, cede o homem à tentação da conquista expansiva e se levanta da rede espantando e esmagando sob as botas civilizadoras a saúva e o formigueiro da roça.
Destacando-se da natureza, o homem rompe a cadeia da repetição alçando-se à categoria de agente dominador da ordem natural. O trabalho, que fora uma pausa necessária entre o descanso e a preguiça, converte-se em alavanca de transformação da natureza assegurando a acumulação de bens e de tecnologia posta a serviço da dominação dos meios naturais e sociais. Ao suspender seu estado de boiação sobre as águas e desatar o punho da rede em que improdutivamente se balançava, o homem ata o punho do seu semelhante ao trabalho escravo instituindo assim a injusta divisão social da produção e do usufruto dos bens. Dizendo tudo isso de outro modo, também metafórico, trocou a boiação pela opressão do outro e de si próprio, pois ao afogar o outro também de algum modo se afoga.
Empenhado nessa lenta progressão civilizatória, passa o homem a exaltar as virtudes do trabalho, sobretudo do semelhante a quem explora, condenando o ócio e a preguiça. Em suma, tendo nascido para boiar, o homem se rebela contra sua boiação originária e represa as águas para gerar energia elétrica. Foi assim que se divorciou da sua natureza aquática, diplomou-se em engenharia de minas e energia e inventou a psicanálise para boiar sobre as molas analíticas de um divã. E daí passou por uma perna de pinto, entrou por uma perna de pato. Senhor rei mandou dizer que nadasse quatro.

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