domingo, 24 de novembro de 2013

Nomes próprios e impróprios II


Postei no meu blog uma crônica sob o título acima e alguns amigos tiveram a generosidade não apenas de a ler, mas também de a comentar no Facebook. Minha reação imediata foi responder também na forma de um breve comentário. É parte do meu código de ética intelectual considerar sempre a opinião do leitor. Afinal, é para ele que escrevo. Não importa o fato de ser ou não um escritor profissional. Aliás, esclareço que sou apenas um amador. Uso o termo no seu sentido original, infelizmente corrompido pelo mau uso, como ocorre com tantos outros. Bastaria pensar em cínico, anarquista, amante... Os cultores da etimologia poderiam citar uma infinidade. É um dos capítulos apaixonantes da história de qualquer língua. Infelizmente, falta-me erudição para escrever sobre o assunto.
Peço perdão pela digressão impertinente e retomo o veio do artigo. Como dizia, é parte do meu código de ética intelectual conceder a devida atenção ao que o leitor me escreve, notadamente quando me critica. Elogio importa muito, claro, mas ninguém discute elogio. O autor agradece, pois é o que busca recolher das leituras, mas não vai além disso. Os mais discretos simplesmente silenciam. Como sabe o bom leitor, o silêncio, no caso, é sintoma de discrição, de agradecimento sem palavras, não desapreço. A crítica, contrariamente, merece maior consideração. Se o autor não busca apenas assentimento irrestrito ou aplauso, é graças à crítica que ele dialoga explicitamente com o leitor. É o que cuidarei de fazer neste artigo. Em suma, tentarei esclarecer melhor meu ponto de vista com relação ao uso e abuso dos nomes próprios que os brasileiros adotam.
Não sei de nenhum escrito de alguma importância que não contenha algum grão intencional de ambigüidade e ironia. Esclarecendo melhor, aludo precisamente à produção intelectual inscrita no âmbito do que designamos como ciências humanas ou ainda humanidades, aí incluída a produção artística. Justificando o que acabo de escrever, é da natureza desse campo, o das humanidades e das artes, certo grau ontológico de indeterminação. Isso decorre da própria natureza do objeto considerado, que é noutras palavras a natureza humana investigada no convívio social (que é da competência da sociologia, da antropologia etc) e noutros modos de ser humano. Por mais que o estudioso ambicione compor um discurso unívoco, não importando o quanto seja genial, esbarrará sempre no que há de insondável, ambíguo, ambivalente ou simplesmente indeterminável na natureza humana.
Devido às razões grosseiramente esboçadas no parágrafo precedente, há sempre algo de ambíguo e irônico no tipo de discurso a que me refiro, mesmo quando o autor dá o melhor de si visando alcançar o máximo de precisão e transparência. Além disso, o autor consciente e inventivo recorre intencionalmente à ambigüidade e à ironia como dispositivos retóricos passíveis de distender as camadas de significação do texto. Autores como Shakespeare, Machado de Assis, Auden, Drummond e todos os grandes são por definição ambíguos e irônicos. Quanto maior a densidade e força de sobrevivência no tempo atestadas na obra, maior a sua carga de ambigüidade e ironia. Disso decorre ainda que a obra dilata seu poder de permanente atualização e recontextualização semântica graças também à colaboração do leitor inteligente, aquele que projeta luz nas camadas de sentido atual ou potencial da obra.
Mas que diabos tudo isso tem a ver com uma mera crônica de um autor amador postada num blog quase anônimo? Reconheço que muito pouco. Se me perdi através de digressões tão tortuosas, foi apenas para sugerir como mesmo uma mera crônica pode suscitar leituras parciais ou ambíguas. E é graças a esse tipo de leitura que me sinto motivado a retomar o assunto, espichá-lo, melhor esclarecê-lo, ou pelo menos melhor esclarecer o leitor acerca do que penso.
Elizabeth Carneiro, por exemplo, afirma que a leitura da minha crônica acordou na sua memória a leitura de dois livros que qualifica como muito bons: um de José Ramos Tinhorão e outro de Mário Souto Maior. Embora não vá além disso, ponderei se acaso teria associado minha crônica a estes autores supondo que endosso a perspectiva radicalmente nacionalista do primeiro e a concepção de pesquisa folclórica do segundo.
Já frisei que ela não afirma nada disso. Sou eu que, leitor inconveniente, aproveito o comentário para alongá-lo em considerações que me interessaria fazer com o propósito de esclarecer melhor meu ponto de vista sobre a questão dos nomes próprios. Ressalto portanto que nada tenho em comum com o nacionalismo radical e até intolerante de Tinhorão. Li alguns dos seus livros sobre música e admiro sua dedicação de pesquisador apaixonado pela história da nossa música popular ainda tão pobremente estudada e documentada. Sua perspectiva, porém, é o avesso da minha. Se acaso alguém me leu supondo que minha crítica à adoção colonizada de nomes estrangeiros é feita em defesa do nosso renitente nacionalismo cultural, retruco que me leu erradamente. Há de resto na crônica algumas breves alusões ao nacionalismo cultural que bastam para bom entendedor.
Tinhorão nunca foi capaz de compreender ou simplesmente suportar a bossa nova, sem dúvida a mais refinada e fecunda ruptura modernizante da nossa música popular, devido a seu nacionalismo de viseiras, à intolerância da sua concepção redutoramente nacionalista. Parafraseando o velho ditado popular, o cão ladra e a caravana passa. O cão, explicito, é o crítico de viseiras, incapaz de ver além do muro compacto com que fecha as fronteiras e linhas de comunicação entre as culturas; a caravana é a bossa nova, que passa no sentido de ir além, de continuar viva na história da nossa cultura e portanto sempre se renovar a cada retomada, a cada atualização feita pelas gerações sucessivas de artistas e ouvintes.
É verdade que alguns artistas mais americanizados ou colonizados daquele momento, Elizabeth cita nominalmente Dick Farney e Johnny Alf, adotaram nomes artísticos inspirados na cultura dos Estados Unidos. Mas a analogia com o fenômeno relativo à adoção dos nomes próprios que critico é infeliz, ou inapropriada. Por quê? Porque o exemplo que ela menciona é um mero detalhe dentro do processo complexo de relacionamento da bossa nova com a música americana. Ele serve para desqualificar a bossa nova apenas na apreciação de críticos estreitamente nacionalistas como Tinhorão, que ouve o galo cantar e no entanto não tem ouvido afinado para traduzir o real sentido da música.
A bossa nova foi impiedosamente atacada por críticos do tipo de Tinhorão. Tom Jobim, nosso compositor supremo, foi também impiedosamente desqualificado por Tinhorão e Cia. A crítica é de uma cegueira ideológica tão absurda que cabe perguntar se críticos desse tipo têm pura e simplesmente sensibilidade musical. Notem que não me refiro a conhecimento de técnica e teoria musical, a cultura refinadamente musical. Fico num limite bem mais modesto. Como é que alguém que de fato conhece o conjunto da obra musical de Tom Jobim pode acusá-lo de ser americanizado (ou vendido aos dólares americanos, como afirmou Ariano Suassuna, nacionalista talvez ainda mais intolerante do que Tinhorão)?
Se queremos pregar origens e influências na música de Tom Jobim, é claro que ele bebeu nas fontes do jazz e da grande tradição musical americana. Também bebeu nas fontes do impressionismo musical francês e noutras fontes. Isso tudo é de uma tolice e de uma intolerância intragáveis. Como todo grande artista, Tom tinha antenas muito sensíveis e livres. Portanto, captava sons de todas as procedências. Foi isso o que fizeram gênios musicais ainda maiores, como Bach e Mozart. Se na época destes as formas de intercâmbio musical e estética eram já correntes, o que dizer de um compositor do século 20? Não importa quem ouviram, mas o que fizeram do que ouviram, a forma como recriaram influências e sugestões musicais. De resto, se é para falar em influência, há muito mais Villa-Lobos e muito mais tradição musical brasileira em Tom Jobim (modinha, samba, choro etc) do que música americana.
Concluindo, não argumentei contra a macaqueação dos nomes de procedência estrangeira baseado em nenhuma ideologia nacionalista. Noutras palavras, sou internacionalista em cultura. Mas é evidente que sou antes de tudo brasileiro. Por isso me chamo Fernando e falo a língua portuguesa e dela me valho para escrever e melhor me traduzir e comunicar. Por melhor que falasse inglês ou qualquer outra língua, é óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que minha língua é minha pátria, minha frátria... Bem, aqui o leitor nota que já estou citando Caetano Veloso. Por isso ainda, se tivesse um filho daria a ele um nome extraído da minha língua. É certo que me sentiria ridículo, me sentiria um colonizado se acaso batizasse um filho meu como William ou Giselle, Peter ou Kate, Hulk ou Isabeli (sic). Acrescentaria ainda que em muitos casos é compreensível e mesmo justificável a adoção de nome próprio estrangeiro. Por exemplo: no caso dos casais compostos por membros de nacionalidades diferentes.
Recife, 22 de novembro de 2013.

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