sábado, 23 de junho de 2012

Som e Fúria


Peço perdão a Shakespeare por saquear o título desta crônica de uma das passagens mais citadas, parafraseadas e parodiadas de sua obra. Não bastasse tanto, vou rebaixá-la ao nível do meio-fio em que servilmente medimos nosso cotidiano. A fúria, ou o ruído que sobressalta o ambiente urbano em que nos movemos, há muito suprimiu o espaço e a configuração contextual dentro da qual o som habitava. Como fruir o som e habitá-lo com nossa civilidade e sensibilidade num mundo movido pelo ruído que se tornou compulsório? Como conjugar o som à solidão num mundo cuja superpopulação ocupou o espaço vazio com seu alarido incessante?

O ruído não se impõe apenas nos ambientes mais densamente povoados, como o trânsito infernal das nossas grandes cidades e o shopping center, templo e paraíso da sociedade de consumo. O ruído foi imposto nas clínicas e hospitais, nas igrejas e até nos mosteiros. Talvez em alguma montanha remota, cuja existência ignoro e não foi ainda saqueada por nenhum guia turístico, sobreviva algum mosteiro consagrado ao exercício da religiosidade dissociada do século. Mas até isso me parece duvidoso, já que vivemos num mundo em que a fronteira entre o sagrado e o profano, fundamento da distinção entre a transcendência religiosa e a imanência secular, está se apagando. O padre, o pastor, o oficiante de qualquer seita religiosa, tornou-se um ídolo de massa como um artista pop. Basta lembrar o exemplo do padre Marcelo Rossi. Portanto, o espaço da religião já não é provedor de som e silêncio, já não existe fonte de separação momentânea do século regida pelo recolhimento e a meditação, a solidão impregnada pela corrente mística avessa ao tumulto do século. Saltando da esfera da religião para a da cultura letrada, como entregar-se ao exercício da leitura num mundo como o que acima esbocei? A conversão da livraria em espaço de comércio promíscuo, misto de discoteca, bar e cafeteria, dvdteca e parque infantil, anulou o leitor.

Costumava há alguns anos frequentar a Livraria Cultura, provavelmente a mais poderosa rede de livrarias do país regida por essas novas funções e expressões da cultura radicalmente mercantilizada. Meu dia preferido era o sábado à tarde. Ia à livraria para conferir os novos lançamentos, explorar prateleiras ainda desconhecidas e também comprar livros. Ocasionalmente via e conversava com amigos que já me habituei a encontrar apenas no Facebook. Ora, ninguém explora um acervo sem em algum grau o ler para formar uma noção razoável do que é, da medida em que interessa ao leitor. Portanto, a livraria é a instituição onde compramos livros e portanto é também um espaço de leitura. Como no entanto praticá-la, a leitura, atormentado pelo zum-zum dos consumidores ansiosos, os gritos das crianças que correm e saltam e gritam entre prateleiras, o ruído incessante do rock pauleira vibrando nas paredes e reverberando nos ouvidos sitiados do mísero leitor carente de reclusão e silêncio?

Tentei trocar o sábado à tarde, hoje intolerável, pela noite da terça. No domingo, nem pensar, pois é o dia em que os pais, letrados e iletrados, liberam a criançada para converter a livraria num parque de diversões. Afinal, aonde levá-la numa cidade privada de espaços de associação livre e lazer? As poucas praças e parques que temos, no geral degradadas pelo abuso da população e o descaso dos governantes, são de uso quase exclusivo da população pobre. Os abastados, as camadas possuidoras, refugiam-se nos shoppings e condomínios, também nas livrarias.

Por isso troquei o sábado pela terça à noite. Mas logo constatei desolado que a fúria não poupa o som e a solidão em nenhum dia da semana. Lá estão as crianças gritando e saltando, lá estão os pais e consumidores falando alto no celular, entretidos em conversas intermináveis e indiferentes ao leitor espremido entre as prateleiras; lá, ainda e sempre, vibra o som do rock pauleira ou o pagode. Apertado pela necessidade biológica, o leitor expelido da livraria vai em busca do sanitário – ou banheiro, como reza o eufemismo corrente. É lá, logo descobre, que a fúria é mais ruidosa.
Onde esconder-se na cidade povoada pela fúria? O leitor retorna à livraria e tenta entregar-se à leitura digestiva, que prescinde do som propício à leitura concentrada. Folheia a edição mensal da revista da Livraria Cultura e logo esbarra numa curiosa ironia: o editor dedica o editorial ao tema do barulho. Noutras palavras, deplora e até acusa o ruído dominante nos nossos formigueiros urbanos, como de resto o faço nesta crônica. A ironia consiste, claro, no fato de que é a própria livraria que hoje afugenta o leitor, que o impede de circular civilizadamente no seu espaço. Será apenas ironia ou a inconsciência gerada pelo fetiche da mercadoria, como diria Marx?

E se o leitor tiver por acréscimo a infelicidade de adoecer? Encontrará acaso, em meio à cura da dor e da doença um espaço onde possa se refugiar na leitura, na solidão propícia ao convívio indesejável com a doença? Vá o enfermo a qualquer clínica, hospital ou consultório da cidade. Encontrará uma televisão ligada em todas as salas, sobretudo na sala de espera. Como o que mais fazemos nas nossas instituições de saúde é esperar, não apenas a cura, talvez tenhamos a fortuna de encontrar remédio para a dor de adoecer, mas nunca para a dor de viver privado do som e do silêncio. Portanto, bendita seja a morte, último refúgio do silêncio.

Encerro a crônica com o relato de uma anedota que bem a ilustra. Há anos, provavelmente em 1998, recebi a visita de uma amiga inglesa com quem muito convivi na Inglaterra, inclusive imersos, ela e eu, na atmosfera de som e silêncio, de solidão e confidência. Casada com um baiano, veio ao Brasil e passou cerca de dois meses em Salvador antes de vir encontrar-me em Recife. Levei-a, logo que chegou, para conhecer a Praia dos Carneiros, então ainda uma praia quase privada. Graças à amizade generosa de Zildo e Léa Rocha, pude dispor da chave da casa onde tantas vezes, também na companhia do nosso amado Daniel Lima, vivi momentos preciosos de recolhimento, solidão e convívio prazeroso com esses e outros amigos.

Chegamos ao entardecer e logo nos acercamos do mar. De repente, a lua cheia emergiu do fundo das águas recobrindo a paisagem com sua luz majestosa. Foi um momento de beleza miraculosa e indescritível. Voltando-me para minha amiga, vi lágrimas escorrendo pela sua face iluminada. Perplexo, perguntei-lhe por que chorava. E ela me respondeu com estas palavras que ficaram gravadas na minha memória de brasileiro perdidamente desamparado de som e silêncio: “Fernando, I´m listening the silence in Brazil for the first time”. Hoje isso seria impensável na própria Praia dos Carneiros, que há anos entrou no circuito turístico do Brasil.

Recife, 2 de junho de 2012.

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