sexta-feira, 15 de junho de 2012

Visita da Memória


Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Álvaro de Campos.

Ah, memória que não sossega
viva no amor que me nega
viva até quando esquecida
como se a vida vivida
fosse o que resta de vida.

O passado na praia me visita
de braço com os passos da memória.
assoma como um ranger de portas que se prolonga
uma dor de longe, de tão longe
crispando a pele escura da memória.
Entre o presente deserto e a bruma adiante medida
eis se interpõe sua sombra
tolhendo-me os passos ávidos de fuga ou futuro.
Eu dele sempre fugindo, a ano somando ano
cristalizando num engano
minhas fugas sempre vencidas.

Portas rangendo e o seu vulto
por toda a praia se estende.
Na hora em que sou eu, eu só desamparo
vem sobre mim abatendo sua irreparável matéria.
Nada na fronteira do presente
Nada no futuro configurável
segrega um vago de luz ou me infunde
a mais remota esperança
passível de contrapor ao peso da sua facticidade
sequer um grama de sonho
o rotineiro possível a outros sempre possível.

Sobre mim desce a memória, me visita
vai dispondo pela casa os objetos
aderentes à poeira, vermes, mofo,o meu suor.
Toda minha precária construção já desmorona:
caem janelas, as portas caem
e tudo que era engano range e cai.
Onde agora reina a memória absoluta
resta o sangue dessa visão coagulada
e o cheiro de mofo subindo dos porões irrespiráveis.

Fernando da Mota Lima.
Porto de Galinhas, agosto 1987.
Reescrito em setembro 1995.

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