quarta-feira, 13 de junho de 2012

Igarapeba Revisitada


Outra vez te revejo
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Álvaro de Campos.

Tuas ruas ainda as mesmas
quem sabe mais tristes, mais que desoladas
mais a inexorável morte cujo espectro pelo teu corpo se alonga.
Ando-te com medida lentidão e quase medo
como se teu ventre segregasse minas
tuas águas pântanos, tuas ruas túmulos.
Ando-te, Igarapeba, como se estranhos fôssemos.
Nos teus quintais procuro minha infância
na Rua do Comércio a minha casa
nas calçadas vestígios de um tempo
para sempre em tuas noites dissolvidos.
Iniludível a exatidão desta luz que nos cega:
estranha és para mim
estranho sou para ti.

De ti o tempo tão-só reteve
quando mesmo não agravou
a face mais brutalizada e triste, Igarapeba.
De ti este rio, murmúrio último
da eternidade que te sobra.
De ti a musculatura retesada
desde o princípio vencida
a errar solitária por essas ruas
gestadas do acaso e vão propósito.
De ti as casas ensombrecidas
em vagos corredores empilhando
memórias de família e agregados.
A luz fosca filtrada nos telhados
curvados sob a noite do sem-tempo.

Meu rosto, rompida fuga no tempo
eu o procuro na superfície das águas moventes
mas o leito é uma só compacta viscosidade
as águas a irrespirável matéria sobrante
de naufrágios e invernos sem reparo.
Teus homens, Igarapeba, o teu legado de sangue, são mortes
no desde-sempre-sem-som.
Conservam ainda, ó mistério, nula aparência de vida:
andam, conversam, mastigam, cochilam
entre a rotina e o sono.
O tempo é um tempo neutro de resignação e paciência
de desesperança e diluída memória.

Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba.
Há entanto neles alguma coisa que semelha vida.
Alguns falam, me cumprimentam
outros - teimosa humana matéria! - até sorriem
um perplexo sorriso de conformação.
Teus homens, ébrios fantasmas, sobre as ruínas tombados
são pó poeira ruína
lutando nos muros e esquinas
contra a ciência da pedra
essa indomada matéria interpelando no tempo
a impotência dos que te habitam.

Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba
e entanto a ti me devolvo
já tantas mortes morridas
já tantas vidas sofridas
para enfim andar-te certo, dolorosamente certo
de que meus passos estão já tão mortos
quanto estão teus mortos
minha vida viva quanto tuas vidas.

E eu que errei tantos dias
anos estradas sem mapas
para nas mãos tomar-te como se foras
ainda a mesma, ainda a que neguei
rasgo teu ventre à cata de raízes
que foram minhas sem que as quisesse.
A ti regrido mais que a mim e a tudo
e te devasso desnudo e te esquadrinho.
Mas tua face, a única sobreviva
é só o pó o poço
onde calaste o tempo o rio a minha infância
eco sem voz na memória.

Fernando da Mota Lima.
Recife, outubro 1975.
Reescrito em 14 outubro 1995.

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