terça-feira, 12 de agosto de 2014

O Ouvido


Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de uma voz musical.
Na longa jornada do dia
Vai de um ao outro extremo
Através de uma compacta massa de veículos
Aspirando fumaça tóxica num mar congelado.
Ouve o ruído incessante
Impropérios e buzinas
Sangue no asfalto, corpos
Abatidos como aves mecânicas.

Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de voz humana.
O estampido de assaltos
Armas de fogo abatendo
Ratos errantes nas ruas.
O mar poluído recolhe
Suas ondas e sobre a areia recoberta de lixo
O ruído das gentes se alastra
E a festa, o batuque se sucedem
Ressaca sobre ressaca.

Um ouvido luta no deserto, na noite
No escuro da sala captando em meio às balas e o fogo
A música suprimida da cidade.
As janelas, invadidas do dia à noite,
Estremecem com o ruído da construção civil.
Nos andaimes suspensos sobre o vazio
Os escravos martelam sua servidão.
Um corpo cai, outro é soterrado e segue
Indiferente o imperturbável ruído do século.

Um dia o silêncio reinará sobre o Brasil
Talvez apenas quando tudo seja já extinto
E reste apenas o vento soprando
No deserto de tudo o deserto que regamos
E empilhamos sobre a terra devastada.
Mas então já não haverá ouvido.

Recife, 19 de julho de 2014

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