sábado, 24 de setembro de 2016

Literatura não é biografia


A relação complexa entre a literatura e a realidade é um tema que sempre me apaixonou. Já esbocei em artigos ocasionais algumas reflexões insatisfatórias tentando melhor compreendê-la e traduzi-la em palavra escrita. Algumas circunstâncias recentes conduzem-me de volta a este tema.
Publiquei recentemente um poema intitulado “A voz da insônia”. Trata-se de um poema de tons sombrios no qual a voz narrativa do poema transpira tristeza, solidão, memórias dolorosas do amor perdido atormentando a insônia de um homem castigado pela solidão. Uma amiga generosa, tomada por um impulso comovente, telefonou-me para confortar meu sofrimento. É claro que isso me sensibilizou, inspirou-me gratidão, quando em qualquer circunstância quase ninguém mais me telefona, mas precisei esclarecer que não era o narrador do poema, isto é, a voz lírica tecida por meu discurso poético não era a minha. É claro que injetei no poema algo da minha experiência relativa ao espectro de afetos e vivências condensados no poema. Mas cuidei de esclarecer o mal-entendido, ou a leitura biográfica do poema, acrescentando que felizmente durmo bem e convivo sem conflitos com a minha memória escovada pela minha determinação de nunca abafar perdas e traumas seguindo a via corrente da repressão de tudo que nos causa dor e desprazer. Por isso não duvido de que a voz da insônia atormentada é uma das conseqüências das memórias reprimidas.
Logo em seguida, escaldado por esse tipo de confusão elementar entre literatura e biografia, publiquei uma crônica ficcional cujo narrador é um alcoólatra desbocado e agressivo. Variando uma expressão que ele próprio usa na crônica, meu personagem é o tipo de companhia que me incomodaria e evito na vida real. Por essa e outras razões que não esmiuçarei, adotei o expediente nada original de me dissimular sob as vestes de um pseudônimo. Chama-se Severo Machado. Não o recomendo a ninguém, embora a experiência comprove que atrai muitas mulheres, e tenho muitos outros motivos justificáveis para inventá-lo sem todavia declarar publicamente minha paternidade. Muitos dos seus traços de personalidade me foram inspirados pela leitura dos contos de Rubem Fonseca, meu contista brasileiro preferido na cena literária contemporânea.
II
Literatura não é biografia:

O poema não é um documento biográfico, me disse meu amigo poeta. A frase lhe saiu com sabor de queixa, do desânimo de quem se sente incompreendido pelo leitor. Como todo autor, ele precisa do leitor, é em parte por este que escreve, mas seus poemas não são documentos biográficos. Lidos nestes termos, o leitor concluiria que seus poemas são a confissão de um homem solitário e insone, atormentado por memórias dolorosas. Foi isso o que lhe disse uma amiga com a comovente intenção de o consolar de suas dores derivantes do modo como ela leu o poema. Era um poema, claro, sobre a solidão e a insônia.
Mas o poema, repisa o poeta, não é um documento biográfico. Ele dorme bem, vive em paz com sua memória, embora sofra a carência do amor, a aridez desses tempos difíceis que vivemos: tanta infelicidade e solidão gritadas e dissimuladas nas redes sociais contra os políticos corruptos, com perdão da redundância, contra as mazelas insanáveis do Brasil.
O poeta, ser sensível decerto em demasia, lamenta não apenas a incompreensão da leitora que desastradamente o consola, mas a realidade sem vias de fuga. Ora, dirá quem me lê, como um poeta não encontra na imaginação vias de fuga da realidade? É outra incompreensão que também desola o poeta. Como é banal o preconceito de que a poesia é uma fuga do real. Lembrou-me o dia em que, cuidando de um amigo operado num hospital, recebeu a visita de uma médica enquanto lia Drummond para o enfermo, gravemente enfermo. Nunca esqueceu o que ela disse: "Por favor, não me fale de Drummond. Estou farta de realidade".
Em suma, todo poema verdadeiro é necessariamente belo, mas talvez insuportável para quem se contenta em viver na superfície da realidade. Por fim, reiterando ainda a queixa do poeta, o poema não é o reflexo do que o poeta vive. O poeta é uma antena do que é humano, não Narciso enamorado de si próprio nas águas da arte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário