quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mulheres raras


Flores Raras, dirigido por Bruno Barreto, é um filme excepcional e belo, uma comovente obra de arte. Na verdade, é para mim um dos grandes filmes do cinema brasileiro e o melhor que vi nos últimos anos de que tenho memória. Inspirado no romance Flores raras e banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, condensa de forma primorosa, baseado no roteiro assinado por Matthew Chapman e Julie Sayres, a experiência brasileira de Elizabeth Bishop (Miranda Otto).

Quem no Brasil conhece Elizabeth Bishop? Ainda hoje, muito pouca gente. Embora compulsivamente despatriada, pois viveu grande parte de sua vida fora dos EUA, foi ainda em vida reconhecida como uma das grandes poetas americanas. Veio para o Brasil em 1951, intencionalmente apenas de passagem, e acabou fazendo do Brasil sua segunda pátria, onde viveu cerca de 20 anos. Tudo por causa de uma mordida acidental num caju, que no filme é uma variante da maçã mordida por Eva no Éden, e sobretudo por causa do longo, intenso e conflituoso amor que viveu com Lota de Macedo Soares (Glória Pires). Difícil imaginar duas mulheres de caráter mais diferente, e todavia afins, entrelaçadas pelo amor à imaginação inventiva e definitivamente unidas pelo amor lésbico.

O filme começa e termina com duas cenas ambientadas no Central Park, Nova York. Na primeira, Elizabeth lê para seu grande amigo e poeta Robert Lowell (Treat Williams) uma versão parcial de One art, que considero seu melhor poema; na segunda, lê o poema na sua forma definitiva, cerca de 20 anos mais tarde. A história que se desdobra no Brasil entre esses dois extremos aparenta simbolicamente sugerir que Elizabeth Bishop precisou viver, amar e perder muito para afinal conquistar a forma do poema tal como o conhecemos. One art, em suma, é um poema sobre a arte de perder escrito por uma mulher que nasceu perdendo. Perdeu o pai ainda bebê, pouco depois a mãe, internada num manicômio onde morreu anos mais tarde, cresceu dividida entre avôs maternos e paternos inconciliáveis e por fim, quando cresceu, fez dos mapas e geografias sua forma de pátria ou lar.

Lota de Macedo Soares também não teve uma história de família que se possa invejar, mas, por vias que ignoro, fez de sua condição de mulher brasileira dos meados do século xx um tipo raro de mulher: a mulher rica, voluntariosa e autoritária. Lota comporta-se como uma mulher decidida e afeita a dobrar obstáculos, qualidades apenas parcialmente comuns no ambiente público regido pela tradição patriarcal brasileira ainda fortemente tingida por remanescentes escravocratas.

Logo que se amam e Elizabeth docilmente dobra-se ao seu domínio, parece que ao cabo, se a corda se romper, a queda será desta, não de Lota. A fortaleza, no entanto, assim como seu avesso, a fragilidade, tem muitos modos de ser e perder. Assim, a tímida e delicada e frágil Elizabeth sobrevive a tudo porque nasceu perdendo e viveu uma vida de perdas. Talvez a grande âncora de tantas perdas tenha sido a literatura, em particular a poesia. Lota, por outro lado, era uma mulher de ação, uma mulher que, sobretudo no tempo do Brasil em que viveu, corresponderia ao estereótipo nordestino da mulher-macho.

Amiga e parceira de luta política de Carlos Lacerda (Marcello Airoldi), Lota projetou e dirigiu a construção do Aterro do Flamengo, obra infelizmente excepcional no Brasil de acampamentos urbanos que são nossas cidades. Samambaia, sua propriedade onde muitas cenas do filme são ambientadas, foi projetada por Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx. Hoje, bem melhor que então, sabemos bem o que isso significa. Basta olhar em torno ou sair para as ruas congeladas pelos automóveis e a paisagem brutal de arranha-céu, viaduto e concreto. Cidades desalmadas. Ambos, Lota e Carlos Lacerda, apoiaram ativamente o golpe militar de 1964, Lacerda de metralhadora em punho, e acabaram pagando caro por isso. O filme contém referências ligeiras, mas relevantes, que valem para assinalar de forma sutil os vínculos orgânicos entre nossa classe dirigente autoritária, a inércia servil dos herdeiros seculares da escravidão e as soluções de força impostas em momentos de crise.

A grande força de Lota consistia na vida ativa, na vida voltada para fora, para a ação sobre o mundo. A força dos poetas, seres aparentemente frágeis, sobretudo da mulher poeta, parece voltar-se para dentro, para a energia interior cuja irradiação se converte em poesia, arte e outros artifícios de enganosa fragilidade. Os fracos e sensíveis caem, não raro com tanta discrição que mal ouvimos o ruído da queda sobre o solo. É este o timbre, o eco remoto da poesia de Elizabeth Bishop, cuja mobilidade errante através de mapas, cidades e países, feita de uma dolorosa sucessão de perdas, se traduz numa forma penosa e obsessivamente trabalhada, tão sutil que faz da dor da perda uma forma velada de auto-ironia. A queda dos fortes, como a de Lota, é a de quem desmorona. Daí o ruído que provoca, pois ou cai arrebentando correntes fora de si ou cai por contração autodestrutiva. Lota, um admirável colosso de vontade e determinação, cai por contração afundando na depressão e por fim no suicídio. Talvez exista alguma sabedoria na fraqueza realista dos que sabem que viver é perder, contanto que se arrisquem. Os fortes temerários ostentam a força ilusória dos que acreditam que vivem para vencer. Não seria essa a fraqueza dos fortes como Lota de Macedo Soares? Glória Pires e Miranda Otto representam essas formas de vida e caráter de forma admirável.

Um comentário:

  1. Gostei demais, Fenando. Saúdo o texto - sua beleza - com um carinhoso abraço. Vânia

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