domingo, 5 de setembro de 2010

Machado, Mário, Nacionalismo Cultural





Machado de Assis é provavelmente o autor que mais reli nos últimos anos. Uma das provas de força e permanência de sua obra consiste no fato de que não é apropriada para leitores juvenis, não importando muito, no caso, a excepcionalidade do jovem que o leia. É certo que na juventude podemos aproveitar muito de sua leitura, mas me parece evidente que somente o leitor maduro, calibrado pelo metro da cultura intelectual e da experiência, pode usufruir plenamente a grandeza de sua obra, captar nos entretons e alusões sutis a visão complexa que nos propõe para a compreensão das relações humanas.

Considero, por exemplo, o ceticismo com que foi capaz de abalar alguns dos mitos mais poderosos do seu tempo. Em “A Cartomante”, Machado submete ao crivo do seu ceticismo vários temas bem transparentes na urdidura do conto: a crendice ingênua de Rita, vítima corrente da charlatanice que sempre imperou no mundo, não importando todo o arsenal ideológico mobilizado pelas elites para celebrar a ciência, a tecnologia, o saber secular cioso de superar as representações mentais baseadas na superstição e na tradição religiosa; a indeterminação dos sentidos que regem e ao mesmo tempo confundem as ações humanas; por fim, o próprio ceticismo epidérmico de Camilo, que tem muito do homem moderno sempre exposto a regressões primitivas. Para além de sua aparência cética, ostensivamente avessa à crendice da amante, pulsa o desejo primitivo acossado pelos sinais ameaçadores irradiados pela realidade. Oprimido pelo medo de ser desmascarado pelo amigo a quem trai, não resiste à tentação de consultar a cartomante no momento em que o acaso o coloca diante da porta em que esta pratica sua pseudociência. Machado sabe ardilosamente enlaçar todos esses fios da trama que se move em direção a um desenlace no qual se conjugam os caprichos do acaso, o ceticismo um tanto zombeteiro em face de nossas ambivalências desastrosas e o imprevisto.

Machado exercita seu ceticismo desmistificador e desmitificador no auge do cientificismo do século 19. Era sólida a crença na ciência e no progresso durante o período em que escreveu sua obra fundamental. Mesmo ideologias investidas da determinação de destruir mitos, como é o caso emblemático do marxismo, recaíam na sedução utópica baseada no progresso da ciência posta a serviço da humanidade; na sedução da perfectibilidade humana, numa soteriologia orientada para a reconciliação do gênero humano. Essa utopia reconciliadora se expressa na crença em um futuro forjado pela revolução proletária, quando então viveríamos num paraíso liberto das opressões impostas pela sociedade dividida em classes.

O marxismo, esse fascinante credo secular, tornou-se ainda mais influente no século 20. Eu e todos os jovens dos anos 1960 e 1970 que o digam. A própria disseminação do marxismo, credo corrente nos círculos da juventude e na cultura de esquerda, então hegemônica, constituiu um obstáculo decisivo para nossa assimilação da obra de Machado. Além disso, a aliança entre marxismo e nacionalismo em países do tipo do Brasil conferia espessura praticamente impenetrável ao reconhecimento de uma obra cujo ceticismo mina e dissolve todas essas crenças generosas mas infelizmente insustentáveis. Não é casual a resistência ou ambigüidade de leitores como Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, para ficar nos três nacionalistas culturais que de imediato me vêm à memória, diante da obra de Machado. Nesse sentido, “Machado de Assis”, ensaio publicado por Mário de Andrade no ano do centenário de nascimento do Bruxo pai de Brás Cubas, revela muito do que há de indigesto no ceticismo machadiano para o espírito otimista e progressista dos ideólogos do nacionalismo, sejam eles ufanistas ou críticos, simplórios ou dialéticos.

O ensaio de Mário é um primor de ambigüidade, de estimativa dividida diante de um escritor cuja grandeza se impõe ao leitor agudo que é Mário ao mesmo tempo em que segrega qualidades incompatíveis com esse militante da modernidade progressista. Reações similares, embora menos explícitas, procedem ou coerentemente procederiam de escritores como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Lembro-me, a esse propósito, de que há muito li o discurso escrito por Jorge Amado quando de sua recepção como membro da Academia Brasileira de Letras, ato de rendição ao conformismo institucional ao qual se curvam tantos revolucionários letrados. Amado distingue na sua elocução duas correntes centrais na história da narrativa ficcional brasileira. Enquanto José de Alencar constitui a matriz da primeira, nacionalista e portanto colorida pela paisagem e por largos traços descritivos, Machado é a matriz insuperável da segunda. Não tenho memória do termo com o qual a identifica, mas o bom entendedor pode seguramente deduzir que se pauta pelo metro da introspecção analítica. O bom entendedor pode igualmente prescindir de grande imaginação crítica para concluir que Amado se filia à matriz alencariana, assim como Mário de Andrade antes celebrou Alencar como ilustre predecessor do seu Macunaíma e Gilberto Freyre dedicou páginas entusiastas à literatura do grande representante do romantismo brasileiro.

Fui durante muitos anos um leitor apaixonado da obra de Mário de Andrade. Por isso assimilei em graus até inconscientes seu nacionalismo amorosamente debruçado sobre toda a rica variedade de nossas expressões culturais. Mário influenciou-me tão profundamente que ainda hoje surpreendo em mim sentimentos de culpa decorrentes de minha omissão enquanto intelectual diante da esfera pública. As angústias e irresoluções ideológicas e morais que o atormentaram durante seus últimos anos de vida não tiveram o poder de desencorajar seu espírito participativo, sua crença nas ações pragmáticas que se impunha enquanto ser moral. Talvez o que mais me dividisse enquanto leitor de sua obra fosse precisamente o conflito que vivia entre esse apelo à ação pragmática e meu ceticismo que presumo derivar antes das condições formadoras de minha experiência do que da mera leitura dissociada das fontes determinantes de minha vida.

Descobri mais tarde, com o concurso imprescindível da experiência e do amadurecimento intelectual, que meu escritor brasileiro de eleição era Machado, não Mário. Ao me propor essa escolha, não considerei simplesmente os fatores de ordem ideológica acima descritos, mas sobretudo o poder da força imaginativa com que Machado foi capaz de traduzir esteticamente as questões acima. Encurtando a história, a experiência e a idade transportaram-me a esse ponto em que nitidamente escolho Machado contra Mário, Machado contra toda a nossa tradição do nacionalismo cultural. Longe de mim renegar esta tradição que sem dúvida fecundou algumas de nossas mais altas vocações intelectuais e literárias; direi mais, direi artísticas e culturais no sentido mais amplo destes termos.

Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro foram não apenas fautores, mas também inspiradores admiráveis do que de melhor se realizou neste país dentro do espírito dos movimentos regidos pelo propósito de afirmar valores diferenciadamente nacionais opostos à dominação estrangeira. Acho pessoalmente o nacionalismo uma ideologia indesejável e a ela me oponho com convicção cada vez mais inabalável, mas não posso fechar meus olhos aos resultados inegavelmente fecundos que produziu. Preciso ainda considerar que num país com as características do Brasil é bem mais problemática a opção intelectual pelo refúgio da inteligência para dentro de uma obra socialmente desinteressada. Os intelectuais acima tinham perfeita consciência desse dado quando optaram pela ação ideologicamente pragmática, pela obra conscientemente empenhada nos valores transitórios da prática artística e humana.

Foi novamente Mário quem melhor expressou tanto o problema quando o dilema aqui enunciados. Assim compreendido, seria de todo injusto associá-lo a uma concepção de nacionalismo antagônica a valores de universalidade humanista. Em mais de uma circunstância manifestou-se contra qualquer tipo de orientação nacionalista dissociada da corrente universal da cultura. Basta que se pense nas vezes em que se opôs a uma leitura estreitamente nacionalista de Macunaíma. Como intelectual de formação antes de tudo européia, inspirado pelo ideal universalista do homem renascentista, Mário tinha consciência dos riscos da intolerância provinciana, do empobrecimento da visão de mundo restrita a uma perspectiva nacionalista estreita. Uma evidência dessa postura mental está bem manifesta na consciência que tinha de trair a si próprio enquanto indivíduo criador esteticamente desinteressado, imantado no ato de criação artística a valores prioritariamente estéticos, quando propunha e realizava uma arte dirigida por interesses pragmáticos, ou ainda por uma noção interessada de nacionalismo cultural.

Machado teve a sabedoria de passar ao largo de todas essas ambivalências e angústias que atormentaram Mário enquanto artista e, mais amplamente, enquanto intelectual empenhado num ambicioso projeto de renovação cultural inspirado no nacionalismo. Ao renovar a linguagem artística subordinando-a a princípios dessa natureza, Mário acabou produzindo uma obra demasiado comprometida com o espírito do tempo, com questões momentâneas que passam, assim como passa a obra que renuncie aos valores desinteressados da obra de arte. É essa uma das razões decisivas para que se compreenda a intocável atualidade da obra de Machado contraposta à de muitos outros, contemporâneos ou pósteros, demasiado aderentes às condições transitórias que toda grande obra tem que por definição transcender. Confrontado com Machado dentro desses termos, Mário se encolhe e com ele boa parte de sua obra.

Recife, 20 de novembro de 2008.

3 comentários:

  1. Fernando,

    Leio seu artigo e me vejo levado a comentá-lo antes mesmo de ter a oportunidade de relê-lo. Ele toca em muitos dos pontos que me ocupam (e me preocupam), atualmente, aos quais nos referimos em nossa última conversa. Trata-se de um problema e um dilema reais -- mais reais e mais complexos, creio, que às quase sempre precipitadas soluções que visam resolvê-los de uma vez por toda. (cada vez mais aprecio a complexidade dos problemas, e cada vez mais resisto ao "fiat" teórico ou retórico que busca livrar-se deles, ao invés de demorar-se neles, de habitá-los e compreendê-los, para dizê-lo de algum modo, por dentro. Uma dessa formas de reducionismo face a problemas mais reais e signifcativos que suas pretensas soluções é justamente essa dialética entre o local e o universal, entre o nacional e o cosmopolita, em que você se demora no seu artigo e que protagoniza momentos centrais na tentativa de compreender países e culturas como os nossos. Não posso deixar de me lembrar, a propósito, e para de algum modo remeter a nossa última conversa, de um texto clássico e extremamente provocativo de Borge sobre o assunto, desta vez, é claro, dentro do contexto intelectual argentino. Mas as semelhanças são muitas, como logo se pode constatar: http://homero-alcibiades.nireblog.com/post/2010/08/20/el-escritor-argentino-y-la-tradicion .

    Um outro conceito recorrente em seu artigo, Fernando, sobre o qual tenho pensando e repensado muito ultimamente, é o de arte desinteressada. Pergunto-me, cada vez mais, se a opção deve necessariamente recair entre a arte desinteressada ou a arte comprometida, ou se na verdade o cenário é mais complexo que isso. Acredito que mesmo a mais desinteressada das artes -- pensemos, por exemplo, nas vanguardas mais experimentais e formalistas; um Mallarmé--, não era desprovida de interesses que ultrapassassem a "arte pela arte". Mas nao precisamos recorrer ao formalismo extremo: a própria arte dita "universalista", a arte que se opõe a um nacionalismo estreito ou a uma causa imediata, filha e prisoneira do seu tempo, mesmo aquela arte que, escrita em épocas tão alheias a nossa, consegue responder de modo pertinente e atual às questões sempre em certa medida anacrônicas da interpretação de da leitura (a leitura que é sempre de um texto pretérito, mas que se dá sempre no instante presente, mesmo essa arte visava a algo além de si mesmo e, nesse sentido, não era rigorosamente desinteressada. A questão, cada vez mais tendo a acreditar, gira em torno do tipo de interesses a que se refere, bem como de seu alcance. Mas sei que me demoro em algo com relação ao qual ambos concordamos. Queria apenas registrar aqui a impressão que seu artigo me causou, e a pertinência que vejo em seus temas. Um abraço - Brenno

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  2. Brenno:
    Muito grato pelo comentário que de fato amplia e enriquece algumas das questões ligeiramente consideradas no meu artigo. Teria muito o que dizer em resposta ao seu comentário, mas parece-me mais apropriado transpor o que aqui omito para a nossa próxima conversa.
    Fernando.

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  3. Don Fernando,
    Por que não escrever sua resposta ao comentário de Brenno aqui no blogue? Parece-me uma ótima ideia, pois a ideia do debate de um blogue público como o seu é de publicizar o debate, e não torná-lo restrito às poucas pessoas com quem temos o privilégio de conversar.

    Brenno, você falou que a dialética do local e do cosmopolita seria um modelo reducionista - ou insuficiente - para lidar com uma questão complexa, mas você não diz por que. Você poderia desenvolver essa ideia? Que modelo alternativo você propõe para explicar essa questão?

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