quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Robinson Crusoé


Robinson Crusoé ou Etnocentrismo Invertido
Fernando da Mota Lima

Publicado em 1719, o romance de Daniel Defoe tornou-se obra fundadora de um dos mitos literários da modernidade. Uma das melhores evidências críticas deste fato é o excelente livro de Ian Watt, Myths of Modern Individualism (Mitos do Individualismo Moderno). Além de Robinson, Watt estuda Fausto, Don Juan e Don Quixote como expressões míticas da modernidade. Todos eles, ao longo da história, têm sido relidos e transpostos para outros códigos expressivos. Watt acompanha com olhar crítico agudo o conjunto das mutações que sofreram ao longo de séculos.

A releitura ou interpretação contemporânea de que cuidarei neste artigo é o filme escrito por Adrian Mitchell e dirigido por Jack Gold. O título original é Man Friday. A tradução brasileira repõe o título do herói Robinson que no filme, como adiante veremos, torna-se o vilão da história. Começo por assinalar que se trata de uma adaptação muito criticável sob muitos pontos de vista. A de Luís Buñuel, por exemplo, filmada no México em 1954, é bem superior. Por que então adotei-a como documento de referência sociológica para discuti-la com meus alunos? Precisamente porque, apesar das suas muitas falhas, encerra inegável riqueza de fundo sociológico para a exposição e esclarecimento de temas centrais do programa compreendido pela disciplina Fundamentos de Sociologia. Fica portanto claro que meu critério é antes pedagógico do que estético.

Importaria acentuar, já de partida, a questão relativa ao foco narrativo do filme, pois é muito reveladora da perspectiva ideológica adotada pelos realizadores. Estamos agora diante de uma recriação da história do romance que vira tudo pelo avesso, pois é narrada por Sexta-feira. Já nas cenas iniciais desenha-se o confronto entre duas formas de cultura radicalmente opostas: a europeia ou ocidental, cujos traços mais fortes são o cristianismo puritano e dominador, capitalista e colonialista, utilitário e repressor. A ela se opõe a tribal ou, mais amplamente compreendida, a colonizada e periférica. A primeira tem em Robinson um dos seus símbolos supremos; a segunda, Sexta-feira.

O filme expõe de forma nítida e redutora não apenas o conflito radical entre essas duas formas de cultura, mas também a raiz destrutiva e dominadora da cultura ocidental. Já na primeira cena fica evidente que a própria religião é um instrumento justificador da dominação do homem ocidental. A passagem da Bíblia lida por Robinson não dá margem a nenhuma dúvida. Quando os dois personagens se encontram, logo em seguida, a narrativa desdobra-se numa infinidade de situações que espelham os traços negativos de Robinson em contraste com os positivos de Sexta-feira. Ressalto abaixo os temas fundamentais da trama que confirmam essa oposição insolúvel e maniqueísta, isto é, uma oposição entre o mal (Robinson) e o bem (Sexta-feira).

Começando pela questão da linguagem, crucial para que se estabeleça a comunicação necessária entre os personagens antagônicos, as cenas relacionadas à instituição de uma língua comum entre eles destacam antes de tudo o caráter do poder contido na relação linguística estabelecida entre Robinson e Sexta-feira. Noutras palavras, a língua que se impõe é a do mais forte, Robinson, a do colonizador que empunha uma arma de fogo. Robinson impõe a Sexta-feira não apenas sua língua, mas também uma identidade nominal, pois lhe atribui um nome, sua religião monoteísta e puritana, sua ciência, seu nacionalismo inglês, capitalista e destruidor da cultura de Sexta-feira, seu regime econômico baseado na propriedade privada e na ganância orientada para a acumulação de bens e a exploração da natureza e do seu semelhante.

De início, Robinson escraviza Sexta-feira, ao mesmo tempo em que procura impor-lhe os aspectos fundamentais da sua cultura. O colonizado, de sua parte, vale-se de toda sua astúcia para resistir à opressão imposta pelo colonizador. Mas em várias circunstâncias ousa opor-lhe resistência explícita. Por exemplo: quando se recusa a continuar trabalhando para Robinson como um escravo. A solução encontrada por este é a instituição do trabalho assalariado, isto é, a substituição do trabalho forçado pelo pago na forma de um salário semanal. É claro que a economia monetária nada significa para Sexta-feira, assim como muitos outros traços da cultura de Robinson: o individualismo, o cristianismo monoteísta, a noção de um Deus cruel e punitivo, a propriedade privada, a acumulação de bens, a sexualidade puritana e repressiva, o esporte como competição. O que o seduz é o poder mágico da moeda que rebrilha na sua mão de primitivo crente nas forças anímicas (isto é, dotadas de alma ou espírito) que povoam a realidade natural e humana.

Fiel ao espírito das culturas tribais, o filme situa a narração de Sexta-feira diante da tribo reunida. A canção que abre e fecha o filme expressa claramente o abismo que separa o mundo cultural de Sexta-feira do de Robinson. No daquele, inexiste qualquer sentido de individualismo, fato que se traduz na letra da canção. Tudo é expresso na primeira pessoa do plural, nós, contrariamente ao individualismo de Robinson extremado no fato de ele viver na solidão de uma ilha deserta. Esta circunstância, aliás, muito concorre para que se compreenda o mito de Robinson e sua persistência no mundo contemporâneo.

Além de inverter o sentido fundamental da narrativa, Sexta-feira também inverte fatos consagrados da narrativa original antes respeitados mesmo em versões muito críticas do romance de Defoe. Melhor dizendo, inverte e recria livremente, ao ponto de no fim Robinson suicidar-se. Antes disso, Sexta-feira inverte o sentido da relação senhor versus escravo, ou colonizador versus colonizado. Assim, na parte final do filme é Sexta-feira quem empunha a arma de fogo, símbolo primacial das relações de poder observáveis entre os personagens, e impõe a Robinson o trabalho forçado. Depois disso, navegam na canoa construída por este e por fim chegam à tribo de Sexta-feira. É lá que a tribo decide sobre a aceitação ou rejeição de Robinson como membro do grupo depois de ouvir a narrativa do seu filho desaparecido que retorna e entretém sua comunidade contando-lhe suas estranhas e conflituosas aventuras vividas na companhia de Robinson. Em suma, Robinson é rejeitado e então retorna solitário e miserável à ilha deserta.

O filme se encerra com duas cenas justapostas que bem traduzem seu sentido substancial: de um lado, Robinson, expressão de uma cultura destrutiva, inverte sua destrutividade contra a própria vida e se suicida; de outro, Sexta-feira celebra a vida cantando feliz e reintegrado à sua cultura. Final feliz para o negro nativo, expressão de uma cultura vivida em harmonia com a natureza e com o próximo. Quanto a Robinson, o desenlace parece coerente, já que é produto e agente de uma cultura baseada na dominação destrutiva da natureza e da espécie humana em geral.

Esta versão invertida da narrativa original do romance pareceria extravagante, ou mesmo absurda, se não refletisse no presente muito da culpa cultural assumida pelo Ocidente em face da história. Na cultura acadêmica, sobretudo, há muito predominam teorias tendentes a depreciar ou punir o papel exercido pelas culturas colonizadoras no conjunto da história moderna. É o caso da teoria pós-colonialista, do pós-estruturalismo, do pós-modernismo, também do feminismo. O relativismo cultural em geral desacredita qualquer perspectiva racionalista e universalista. Nesse contexto teórico, a versão assinada por Adrian Mitchell e dirigida por Jack Gold é perfeitamente compreensível. O irônico é que o etnocentrismo pelas avessas espelhado no filme serve apenas para reiterar o caráter ocidentalista da obra. Afinal, foi no Ocidente que surgiram as ciências sociais, cujo desenvolvimento histórico é determinante para compreendermos e assimilarmos a crítica a todo tipo de etnocentrismo e dominação cultural.

Considerando o filme do ponto de vista da nossa cultura, importa salientar que nem somos Sexta-feira nem Robinson. O lugar que culturalmente ocupamos é uma complexa mistura, feita de acomodações e conflitos, da nossa origem associada a ambos. Acrescentaria que hoje somos mais Robinson do que Sexta-feira. Somente um observador preso a viseiras estreitamente nacionalistas seria incapaz de enxergar as evidências impositivas apreensíveis nas relações dominantes e cotidianas. Somos ocidentais periféricos, mas somos ocidentais. Mas o que dizer deles, os ocidentais situados geograficamente na Europa e nos EUA, seus herdeiros supremos na América? Também eles precisam cada vez mais redefinir seu lugar cultural num mundo cujo processo de globalização acelerada borrou todas as fronteiras e identidades estáveis ou enganosamente estabelecidas.

Por fim, importaria ressaltar que, ao investirem contra o mito de Robinson, os autores do filme apenas renovam um outro mito, o que há séculos induz as culturas civilizadas a idealizarem as culturas primitivas. O traço que esse mito no geral mais idealiza é precisamente o da pureza do primitivo, o da unidade tribal que tanta inveja inspira ao indivíduo ocidental pulverizado num mundo do qual desapareceram todos os vínculos comunitários que tanto alimentam sua infelicidade, seu desamparo e sua nostalgia.

Acho que nada aprendemos de nós próprios e do outro quando criticamos radicalmente o que somos tomando como referência positiva um outro completamente idealizado. Quase tudo de negativo exposto no filme contra Robinson, mito secular do individualismo ocidental, tem fundamento na realidade de uma cultura que precisaria ser profundamente modificada para atender a nossas aspirações humanas baseadas no amor, na solidariedade, numa ordem social mais generosa e igualitária. Não acredito porém que a idealização mítica das culturas tribais ou primitivas nos ajude a compreender ou mudar adequadamente a conturbada realidade cultural em que vivemos. A crítica necessária, para ser efetivamente transformadora, precisaria investir tanto contra o mito simbolizado na figura de Robinson quanto contra o outro simbolizado na de Sexta-feira.

Créditos:
Título original: Man Friday
Título em português: Robinson Crusoé
Ano de produção: 1975
Baseado no romance de Daniel Defoe e na peça teatral homônima de Adrian Mitchell
Roteiro: Adrian Mitchell
Direção: Jack Gold.
Elenco: Robinson – Peter O´Toole
Sexta-feira – Richard Roundtree
Carey – Peter Cellier.
Recife, 12 de abril de 2010.

4 comentários:

  1. o filme é bastante interessante e dá para tirarmos diversas conclusões do assunto abordado! muito bom.

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  2. Tom Hanks apaixonou-se por Wilson. Você está certo quando diz que o mito secular do individualismo é baseado no amor por uma bola. Hands in Hands.

    abraço

    cap

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  3. O livro é muito melhor q o filme!!!!

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