sábado, 18 de setembro de 2010

A Vitória de Orwell


George Orwell é um desses raros escritores que se tornam parte de todo um clima de opinião. Aviso o leitor que esta expressão é traduzida de um poema de Auden: “In Memory of Sigmund Freud”. Talvez a maior evidência de tão elevado status consista no fato de que escritores dessa natureza influenciam a linguagem usada até pelos que nunca os leram, até por aqueles inconscientes de uma obra como 1984, e de personagens e conceitos como Big Brother, Polícia do Pensamento, Pensamento Duplo etc. Aviso novamente o leitor que traduzo aqui livremente conceitos fundamentais de 1984 sem cotejá-los com a tradução brasileira deste livro emblemático do pensamento antiutópico. Melhor diria se usasse a expressão pensamento antitotalitário, pois Orwell nunca renunciou ao seu ideal de socialismo libertário, que é ainda um modo de ser utópico. Em suma, você fala de Orwell mesmo sem saber quem é ele, mesmo ignorando sua obra que exerceu e exerce ainda um papel decisivo no clima de opinião dominante na história contemporânea assaltada de modo catastrófico por totalitarismos de esquerda e direita.

Orwell é talvez a mais alta expressão do intelectual independente que conheço. Não me esqueço de que alguns leitores puxaram minha orelha quando usei o conceito de intelectual independente para criticar a conivência de José Saramago com regimes totalitários ou ditatoriais de esquerda. Há quem considere a relação do intelectual com o partido, ou mais amplamente com a realidade política, e conclua em termos simplistas que não existe tal coisa, isto é, você é sempre contra ou a favor, está com o partido x ou com o partido y. Essa linha de argumentação é claramente maniqueísta e assim estamos conversados. Você está com o bem ou com o mal e assim qualquer nuance, qualquer possibilidade de inserção entre os dois extremos excludentes é automaticamente suprimida.

A grandeza ética e política de Orwell – ou sua vitória, assim traduzo o sentido do livro que Christopher Hitchens lhe dedica – reside na sua capacidade extraordinária de denunciar o totalitarismo gestado pelos ideais utópicos da esquerda, o nome mais simples desse Big Brother é Stálin, sem renunciar a suas convicções socialistas e libertárias. É claro que este fato foi refutado por seus críticos à esquerda e à direita. Os primeiros o perseguiram e caluniaram por supostamente trair a esquerda, ou fazer o jogo do inimigo; os segundos tentaram apropriar-se de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) e 1984 como se fossem simplesmente obras anticomunistas. O fato ilustra admiravelmente o quanto é difícil ser independente, mas não anula a possibilidade da independência ideológica do intelectual. Orwell converte a possibilidade em fato.

Um dos grandes méritos do livro de Christopher Hitchens, herdeiro do jornalismo libertário patente na obra de Orwell, consiste precisamente em demonstrar como Orwell foi incompreendido ou mesmo caluniado por grandes intelectuais de esquerda. O exemplo mais documentado no livro é o de Raymond Williams, que ocupa no Olimpo da esquerda inglesa papel semelhante ao de Antonio Candido na esquerda brasileira. Lembro-me ainda, introduzindo aqui um grão de memória pessoal, de um ano remoto, talvez 1990, quando compareci a um seminário marxista na Universidade de Londres. Assistindo aos debates acalorados em torno da figura de Orwell, notei o quanto ele ainda dividia os marxistas e outras correntes do pensamento de esquerda.

Acredito que hoje, diluídos os embates ideológicos que incendiaram as lutas políticas durante tantas décadas sangrentas, a obra de Orwell já não provoque reações maiores, divisões do tipo a que assisti no Brasil e na Inglaterra. Mas lembro ao leitor jovem que no Brasil sua obra foi implacavelmente rejeitada e caluniada. Friso que me refiro mais precisamente às duas obras acima citadas, pois é nelas que Orwell concentra sua força satírica contra o totalitarismo, é nelas que investe contra a opressão exercida em nome de ideais libertários. Assim como a direita procurou apropriar-se dessas obras como se fossem simplesmente anticomunistas, confundindo assim de forma desonesta sua crítica ao stalinismo com uma crítica à esquerda em geral, a esquerda identificada com o stalinismo tudo fez para rejeitar e suprimir sua crítica ao totalitarismo. Aliás, conviria lembrar que o totalitarismo não se esgota nas suas mais extremas e terríveis materializações na história do século 20: o nazismo, à direita, e o stalinismo, à esquerda. Resumindo, o intelectual que ousa ser independente leva pancada de todos os lados.

Como acabo de observar, a crítica de Orwell ao totalitarismo não se esgota nos alvos que prioritariamente visou: o nazismo e o stalinismo. Sem querer banalizar o conceito, alerto para o fato de que a tentação totalitária está sempre presente no imaginário dos extremistas e dogmáticos, nos fundamentalistas de qualquer natureza, assim como nas forças de reificação inerentes ao capitalismo. Somente um tolo ou inconsciente suporia que essas forças desapareceram do mundo em que vivemos simplesmente porque o triunfo do capitalismo de consumo e da cultura narcisista pulverizaram qualquer possibilidade de pensamento totalitário. Aliás, bastaria imaginar o que Orwell diria sobre a forma como seu símbolo supremo da sociedade totalitária, o Big Brother, foi apropriado pela cultura de massas do presente. Quanto ao conceito de Newspeak, ou Novilíngua, tão engenhosamente ilustrado em 1984, bastaria pensar em expressões hoje correntes como “fogo amigo”, “terceira idade”, “boa idade”, “Brasil, um país de todos” e “sorria, você está sendo filmado”. Estes poucos exemplos da Novilíngua que irrefletidamente reproduzimos constituem algumas evidências exemplares do uso corruptor da língua, da mentira e da alienação disseminadas através da indústria publicitária e marqueteira administrada como o ópio da cultura de massas. Portanto, a vitória de Orwell é apenas parcial, já que a possibilidade ou mesmo o risco da tentação totalitária nunca desaparecem do horizonte da história humana. Acredito que esta era a convicção de Orwell, até porque ele foi um pessimista impenitente. Ele é a prova viva, talvez pouco comum, do pessimista ativo ou militante, do pessimista superado pela vontade de ação sobre o mundo incompatível com qualquer ideal utópico.

Christopher Hitchens descreve e analisa no seu livro múltiplos aspectos da obra de Orwell além do que centralmente me ocupou neste texto que é antes um breve artigo inspirado pela leitura de sua obra do que propriamente uma resenha. Sendo assim, contempla não apenas traços relevantes da biografia de Orwell, mas também sua relação com o imperialismo inglês, temperado por sua discutida anglicidade, com os Estados Unidos, com as feministas, os pós-modernistas etc. Convém todavia ressaltar que o livro de Hitchens é antes de tudo uma consistente apreciação da obra de Orwell centrada na sua dimensão intelectual e ideológica. Para o leitor que lê fluentemente inglês, recomendaria as biografias escritas por Bernard Crick e Michael Shelden. O melhor de Orwell, na minha opinião, está nos seus ensaios postumamente reunidos e publicados pela Penguin Book. Também sua obra de jornalista e suas cartas foram reunidas e publicadas pela mesma editora.

No Brasil, a Companhia das Letras publicou uma seleção que abriga praticamente seus melhores ensaios. Salvo engano, cito de memória, a seleção e o prefácio do volume foram obra de Daniel Piza. Acrescentaria, como indicação para o leitor curioso, que em 1986 Ken Loach dirigiu o filme Terra e Liberdade, baseado em Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha, traduzido no Brasil sob o título Lutando na Espanha). Esta é uma das obras fundamentais de Orwell, diretamente inspirada na sua participação na Guerra Civil Espanhola. Ele se alistou como combatente do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), corrente de tendência trotskista que acabou esmagada pelos franquistas, de um lado, e pelos stalinistas, de outro. Foi aí que Orwell sentiu na própria pele o que de fato significava stalinismo. Indicaria ainda o último capítulo de A History of Britain, de Simon Schama, também lançado em DVD no mercado brasileiro. O título do capítulo é “Os dois Winstons”, alusão a Winston Churchill e a Winston Smith, protagonista de 1984.

Concluindo, se você quer ter sucesso na vida, sobretudo na vida política, não incorra na insensatez de seguir o exemplo de George Orwell. Ele rompeu com o imperialismo inglês, dentro do qual foi educado para agir no mundo como um instrumento dócil da dominação imposta a povos colonizados; mergulhou no mundo da miséria e da marginalidade social para escrever de forma honesta e documentada sobre párias e trabalhadores esfolados pela espoliação capitalista; foi perseguido e caluniado por ousar denunciar o totalitarismo de esquerda numa época em que a maioria dos intelectuais de esquerda se aliavam ao stalinismo ou eram usados como inocentes úteis e por fim morreu relativamente pobre e jovem. Tudo que nos transmite como legado ético através de sua obra é a convicção e a coragem com que lutou em defesa das coisas em que acreditava e uma noção de integridade rara entre intelectuais. Como notamos, o legado de Orwell não é nada atrativo para os tempos em que vivemos.

7 comentários:

  1. Ola, Fernando!
    Gostei da resenha. Meu entusiasmo por Orwell não é menor que minha paixão por Orson Welles. Este não lutou na Espanha mas veio ao Brasil. Tomou cachaça e filmou com Grande Otelo. Mas a obra de Orwell abala convicções moribundas. Se ele estivesse no Brasil, seria candidato a senador pelo Psol. O trotskismo é uma doença incurável. Já Christopher Hitchens é um mestre. Conheço-o de outras leituras esparsas. Abraço e parabens pelo texto.
    (by the way, você deveria ir morar em York, a cidade de Auden.
    )

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  2. Caro professor.

    Meu nome é Manuel. Sou amigo do Paulo Carneiro, o qual muito lhe preza.
    Quero apenas fazer um comentário breve sobre A Revolução dos Bichos. Se está claro para milhões de leitores que se trata de um libelo contra o estalinismo, pouco importa a intenção do autor. Quanto a 1984, creio que ele foi moderado em sua profecia. O cerco á liberdade é muito mais abrangente. Parabens contudo pelo seu belo ensaio.

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  3. Paulo e Manuel:
    Grato pela leitura e comentários. A Revolução dos Bichos é sem dúvida um libelo contra o estalinismo. Acrescentaria, contudo, que é bem mais que isso. Toda sátira de qualidade, escrita com espírito livre, contém um sentido de ambiguidade ou pluralidade de sentidos que ampliam o leque de sua recepção. É o caso das duas obras polêmicas e ambíguas de Orwell, aquela acima citada e 1984. Ambas foram lidas de múltiplos modos. As vítimas do estalinismo, assim como as dos autoritarismos e ditaduras que pipocaram na América Latina entre os anos 1960 e 1980, leram-nas ajustando-as ao contexto de sua recepção.
    Dear Cap: Noviorque é para Paulo Francis e cia. Eu me contentaria com Brighton, na Inglaterra, ou com uma prainha ainda ignorada pelos abutres do Globo turismo. Um abraço para vocês,
    Fernando.

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  4. Meu caro amigo,
    Afinal, li seu texto sobre o que imagino seja uma biografia intelectual sobre Orwell. Mas confesso que minha "autoridade" para fazer qualquer comentário limita-se a quem conhece Orwell apenas das leituras (já repetidas) de suas duas obras mais importantes que você menciona ao longo do texto. Quero apenas fazer um comentário: simpatizo com as idéias que se distanciam do preto e do branco, embora deva estar chovendo no molhado, essa faceta minha você já conhece. Lendo sua resenha, lembrei-me de um livro de Hannah Arendt que li recentemente: Homens em tempos sombrios, o primeiro ensaio é sobre Gotthold Efraim Lessing, um pensador que poderiamos muito bem considerar como um precursor de Orwell, guardadas as devidas ressalvas quanto ao risco de comparações.
    Mas, pondo os pés no chão, noto que você esqueceu de incluir Mahler na sua galeria de fotos dos gigantes da música, sobre Brahms não falo nada, sou suspeito. Abraços.
    Aldemir

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  5. Pensando nisso do intelectual independente, não poderíamos colocar Edward Said como "descendente" de Orwell? Pelo menos teríamos um pouco de esperança no legado do autor de 1984.

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  6. Com certeza. Acho que Said, militante infatigável da causa palestina, procedeu como um intelectual independente.

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  7. Fernando, foi agradável ler suas palavras sobre Orwell. Esse escritor banido das rodinhas festivas universitárias merece de fato o mais profundo respeito por sua honestidade moral, filosófica e política, exatamente nessa ordem. O que o indispôs com tantos "intelectuais engajados" no mundo da protocultura foi a extrema sinceridade e liberdade de suas idéias. Como aceitar incondicionalmente alguém que considera a catedral de Barcelona de Gaudi uma das mais horrendas produções arquitetônicas do século vinte? Principalmente porque ele tem toda razão. Mas como ousa chutar as vacas sagradas? E são tantas, como a obra de Frank Gehry, por exemplo, apenas parte do jogo de aberrações aceitas pelos "revolucionários dos costumes", meros agentes perturbados dos ressentimentos de classe. Na verdade, "A burguesia terá de sufocar em suas contradições" é um processo de autodestruição... A obra de George Orwell é antes de tudo a obra de um individuo, à procura de ser fiel a si mesmo. Assim como a obra de Aldous Huxley, de quem ele foi aluno em Eton. Huxley mais refinado, mais equipado culturalmente, Orwell (Eric Blair) mais sensível e instrumental. Mas ambos prevendo e temendo uma nova e inevitável sociedade, a da inteligencia coletiva, a do grande organismo, tão bem exemplificado nas colméias e formigueiros. Um salto ("evolutivo"?) que se aproxima muito mais rápidamente do que supomos, com a imersão do grupo humano no universo amniótico da Internet, dos celulares, dos novos Googles Glasses, dos implantes neuronais e adivinhe-se lá, mesmo que imprecisamente, o que mais virá. 1984 e o Admirável Mundo Novo se avizinham com uma espantosa e inevitável fatalidade. O cérebro humano é o ultimo guardião da individualidade - mas não o será por mais muito tempo. Os recursos destinados pela administração Obama às pesquisas sobre o cérebro, a neurofilosofia, as guerras por controle remoto (em 2014 um terço das armas militares nos EUA terão de ser autonomas, por imposição de lei), o totalitarismo midiático, o refinamento da arte da propaganda, os avanços do controle genético, tudo se ajusta à visão desses dois escritores, com ou sem sarcasmo, que importa. Detenha-se em "Dias na Birmânia" e já verá um Orwell revoltado com o "sprit de corps" do colonalismo ingles. Em "A Filha do Reverendo", Orwell denuncia contundentemente os costumes ingleses, dentro da própria ilha do paraíso. Orwell é admirável, mas um coágulo na História humana.

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