sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Caráter Nacional Brasileiro


O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma ideologia. 2a. ed. revista, refundida e ampliada. São Paulo: Pioneira, 1969.

Relutante entre iniciar ou concluir meus comentários a partir da epígrafe do livro ("Existe é homem humano", Guimarães Rosa) acabei por adotar uma solução de compromisso que consiste em começar pelo comentário de alguns usos e funções da epígrafe no âmbito da produção intelectual acadêmica. Um dos usos mais correntes a que se presta a epígrafe é o da ostentação de cultura. Mais que uma exibição de credenciais, muitas vezes infundadas, vale tal ostentação tanto para impressionar leitores pouco críticos quanto para validar relações de legitimação de saber no círculo dos pares. Como veremos, não é este o caso da epígrafe adotada por Dante Moreira Leite. Recortada com fino senso de propriedade crítica, condensa ela efetivamente o sentido fundamental da obra. Se a importâcia da epígrafe consiste no seu poder de concentrar em algumas palavras o significado essencial de uma obra, ou a tese central nela contida, não hesito em repetir que o autor procedeu com rara ciência de síntese crítica.
Em suma, desdobrando agora alguns dos significados implícitos na epígrafe, o objetivo perseguido por Dante Moreira Leite é submeter a noção "caráter nacional", que no seu entender não passa de uma ideologia, como já o indica o subtítulo da obra, a uma crítica inspirada no universalismo iluminista. Essa concepção epistemológica percorre o conjunto da argumentação proposta pelo autor mas é sobretudo evidente no capítulo 6, cujo título é "Método de análise das ideologias".

Valendo-se nos cinco capítulos precedentes de instrumentos críticos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia e à História das Idéias, compõe o autor o cenário teórico-conceitual sobre o qual articula seu projeto de crítica ideológica aplicado a um expressivo conjunto de obras destacadas do corpus da cultura brasileira. Bastaria dizer, visando sugerir a abrangência temporal e temática do objeto, que parte da Carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundante da nossa tradição letrada, para vir ancorar na produção crítico-nacionalista e universitária dos anos 50 e 60.

Ilustrando um pouco o caráter processual da obra, parte Dante Moreira Leite de uma crítica do que designa como sendo "As raízes do caráter nacional". Dá aqui relevo a categorias de uso corrente na Antropologia: o estranho e o conhecido, de características similares às que Walter Benjamin identifica nas figuras do viajante e do artesão sedentário no ensaio "O Narrador"; etnocentrismo e autoritarismo; nacionalismo; racismo; caráter nacional. Operando com muita perspicácia crítica, não se limita a uma mera contraposição de termos tais como o estranho versus o conhecido. Indo além da aparência imediata, demonstra como à relação de oposição se sobrepõe uma rede de ambiguidades segundo a qual o estrangeiro, que num momento inspira reação de desconfiança ou medo, noutro inspira fascínio e um rico registro de desejos e realidades virtuais. Doutro lado, se o conhecido supõe sentimentos básicos de segurança e familiaridade condensados na experiência de sentir-se parte integrante de um grupo portador de valores e práticas compartilhados pelos membros que o compõem, é também verdade que aqui se insinuam a ambiguidade e a ambivalência sugeridas nos provérbios "ninguém é profeta em sua terra" e "santo de casa não faz milagre".

Aplicando tratamento crítico semelhante aos conceitos de xenofilia e xenofobia, patriotrismo, chauvinismo e autoritarismo, passa o autor à consideração do nacionalismo e do caráter nacional. Refutando William Graham Sumner, afirma que o nacionalismo é forjado pelas elites ilustradas, que por sua vez o transmitem às massas (ver p. 17). A passagem do etnocentrismo ao nacionalismo, fenômeno típico do século XIX, não é contínua ou espontânea. Se o indivíduo tende a vincular-se afetivamente ao meio social imediato (vizinhança, aldeia, cidade onde vive ou viveu experiências significativas), a vinculação com a nação se realiza num grau abstrato. Sendo assim, supõe que o nacionalismo é inculcado através dos meios educacionais e comunicativos acionados pelo Estado moderno. Acrescenta que, embora seja costumeira a distinção entre nacionalismo defensivo e ofensivo, o fato é que o nacionalismo traduz sempre uma atitude de superioridade perante outros grupos ou nações. (cf. p. 18).

O caráter nacional, por sua vez, decorre do Pré-Romantismo alemão, aqui destacando-se a figura intelectual de Herder cujas idéias vão confessadamente influenciar o nacionalismo militante de Mário de Andrade. Como se observa nas expressões gerais do nacionalismo cultural e do caráter nacional, Herder enfatiza o desenvolvimento orgânico das nações, que se exprime numa língua própria. Daí o relevo conferido à originalidade de cada povo condensada nas tradições populares. Como afirma o próprio Dante Moreira Leite,
"Essas teses de Herder, como de modo geral as inovações românticas, eram fundamentalmente ambíguas: de um lado, conduziam à valorização da arte e das tradições populares e, nesse sentido, representavam um enriquecimento da sensibilidade e da inteligência; de outro, conduziam também à valorização do passado e a uma fuga diante da vida moderna. Sob outro aspecto, poderiam conduzir à valorização da individualidade e da nacionalidade, o que era maneira de fugir à monotonia do racionalismo e do formalismo no pensamento e na Arte, na medida em que o sentimento e a intuição pessoal encontrariam meios de expressão; no outro extremo, isso conduzia à incomunicabilidade interindividiual e a uma separação entre culturas supostamente heterogêneas". (p. 30)
A consideração sumária dos conceitos acima justifica-se na medida em que o autor entende que a categoria caráter nacional, objeto central do seu ensaio, finca raízes no solo comum de onde brotaram tais conceitos. Dado que esta resenha, assim como o próprio livro de Dante Moreira Leite, intende concentrar a análise no caso brasileiro, não irei além das referências já expostas. Importaria entretanto acrescentar que o autor concebe o nacionalismo como uma mera justificativa ideológica empunhada por grupos que através dele visam legitimar conflitos pré-existentes localizados nas esferas seja da política, da religião, da economia ou da cultura. (ver p. 25).

Apoiado nos avanços feitos pela Antropologia, a Psicologia Social e a Sociologia, critica Dante Moreira Leite as teses racistas produzidas no contexto cientificista que caracterizou a segunda metade do século passado. Refuta, por exemplo, qualquer relação de causalidade entre raça e características psicológicas, que na verdade se explicam a partir da cultura. Salienta ainda como o desenvolvimento desses saberes, baseados na observação empírica, levou os especialistas em Ciências Humanas a superar o conceito de caráter nacional, que entretanto persiste em estudos de historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. Embora frise bem este ponto (cf. p. 41), os capítulos seguintes tratam precisamente do modo como antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais prosseguiram desenvolvendo estudos sobre caráter nacional e personalidade básica apoiados em descrições de natureza empírica. Logo, contrariamente ao que sustenta o autor, os estudos sobre caráter nacional não ficaram de modo algum confinados ao domínio dos historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. A diferença efetiva que aqui se observa deriva do procedimento adotado (análise intuitiva, no caso destes, contra descrição empírica, no caso daqueles).

Como acima observei, antes de grossseiramente sumariar o conteúdo básico dos cinco primeiros capítulos da obra, é no capítulo 6 que o autor melhor justifica no plano teórico o significado da epígrafe "Existe é homem humano". Partindo da distinção entre teoria e ideologia, acentua que aquela pode ser compreendida em nível bem geral com fundamento no saber objetivo que não seria, por isso, confundível com o nível ideológico ou a racionalização. De outro lado, há entretanto quem afirme que todo saber sobre o homem é inevitavelmente ideológico, isto é, não se realiza independentemente da perspectiva e valores do sujeito cognoscente. Dante Moreira Leite ilustra o primeiro ponto lembrando que as teorias racistas do século XIX não passavam de uma justificação ideológica de interesses colonialistas das nações européias mais avançadas. Tal fato seria demonstrado pelo desenvolvimento de um saber objetivo (não-ideológico, portanto) decorrente dos avanços observáveis na Antropologia Cultural e na Psicologia Diferencial. A ideologia racista seria assim superada por uma "teoria objetiva da cultura, e pela explicação de diferenças de inteligência através de recursos econômicos e educacionais. Também neste caso seria possível demonstrar que a teoria culturalista apresenta um esquema objetivo e universal, pois afirma que as teorias racistas seriam apenas formas complexas do etnocentrismo". (p. 131)

Não podendo, nos limites deste breve comentário, estender-me na consideração desse problema, acrescento, seguindo sempre o autor, que se a primeira alternativa teórica implica a superação da ideologia pelo desenvolvimento do saber científico, a segunda, dado seu relativismo intrínseco, submete qualquer teoria ao princípio da dúvida que no limite torna insustentável qualquer teoria. Esta perspectiva relativista mereceu em obra recente de Sérgio Paulo Rouanet, iluminista mais radical que Dante Moreira Leite, uma crítica devastadora. (Ver O mal-estar na modernidade)

Na parte final do já referido capítulo há uma prova adicional do Iluminismo de Dante Moreira Leite. Propondo uma periodização do caráter nacional brasileiro, define como quarta e última fase "O desenvolvimento econômico e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro". Tal processo de superação do caráter nacional, compreendido enquanto ideologia que permeia um largo período da nossa história cultural, corresponderia à década de cinquenta.

Apesar de Dante Moreira Leite estar sempre criteriosamente matizando suas afirmacões mais categóricas, o final deste capítulo, e sobretudo o Capítulo 18: "Superação das Ideologias", cabalmente comprovam o que eu antes observara a propósito do seu universalismo iluminista condensado na epígrafe do livro. Assim como num dado momento Daniel Bell profetizou, em nome do liberalismo, o fim das ideologias (ver The End of Ideology) e há pouco Fukuyama, reatualizando o ideário liberal, procedeu como espetaculoso coveiro da história (ver O Fim da História), Moreira Leite decreta na sua refinada interpretação marxista de matriz universalista, o truísmo é apenas aparente, o fim da ideologia do caráter nacional brasileiro.

A superação das ideologias consistiria na passagem das interpretações baseadas em fatores psicológicos ou raciais para a explicação de base econômica. Moreira Leite ilustra o fenômeno no Capítulo 18 esboçando a trajetória ideológica de Monteiro Lobato. Partindo de uma explicação inicialmente psicológica, o que caracterizaria a fase propriamente ideológica da periodização proposta pelo autor, chega Lobato por fim, quando se converte em militante fervoroso da industrialização brasileira, à compreensão das verdadeiras causas dos nossos impasses nacionais, que radicam na esfera da economia (conferir pp. 311-2).

Um outro exemplo, referente a Caio Prado Jr., reforça a adesão do autor ao Iluminismo de raiz marxista. Formulando um juízo que se tornou consensual nos domínios da crítica cultural contemporânea, identifica na obra de Caio Prado, notadamente em Formação do Brasil Contemporâneo, uma efetiva ruptura em termos de renovação interpretativa da história brasileira. Seguindo as pegadas de Caio Prado, que adota o marxismo como matriz teórica e identifica no sistema econômico implantado desde os primórdios da colonização a causa última das nossas condições de dependência e atraso, assim se exprime Dante Moreira Leite
"...Caio Prado Júnior representa um momento decisivo na superação do pensamento ideológico: as características da colônia não são determinadas por misteriosas forças impostas pelo clima ou trazidas pelas raças formadoras, mas resultam do tipo de colonização imposto pela economia européia". (pp. 315-6).
No plano da literatura, o universalismo de Dante Moreira Leite se traduz na firmeza com que refuta a dicotomia regional-universal que até a altura da fase de superação das ideologias teria regido o conjunto do processo literário brasileiro. Ao dissolver a dicotomia acima aludida, a grande literatura contemporânea, simbolizada em autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, constituiria não mais uma tradução da alma brasileira, ou uma ordem de realidade confinada nos limites da nossa particularidade cultural, mas sim "as situações fundamentais dos homens de outras épocas e lugares". (p. 322)

Como já ressaltei noutra parte, quando Dante Moreira Leite erra, não erra por simplismo ou juízo redutor. Confirmando esta observação, ao procurar propor no fecho do seu livro uma explicação definitiva para a superação das ideologias do caráter nacional, pondera ele algumas possibilidades de explicação para ao cabo cautelosamente contentar-se em avançar uma hipótese sujeita a ulterior comprovação. Eis como a formula:
"... a ideologia do caráter nacional brasileiro passsou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo. Em outras palavras, à medida que se acentua a industrialização brasileira, é a economia do país que passa a ser posta em jogo e a luta pela independência econômica substitui as explicações da inferioridade nacional". (p. 327).
Sustentando embora que a obra de Dante Moreira Leite é regida por princípios universalistas, doutro lado assinalando alguns erros de enfoque resultantes dessa perspectiva, importa repetir, agora de um modo diverso, que o conjunto da sua argumentação não é linear. Noutras palavras, longe de atribuir aos fenômenos que analisa, e ao modo como se processa a inserção desses fenômenos no âmbito da história e da cultura, formulações e respostas simples, continuamente acentua a complexidade, quando não os tons contraditórios, com que se traduzem na ordem concreta da realidade. Sendo assim, embora acredite que a epígrafe do livro condensa a interpretação de um estudioso de corte iluminista, ideologia hoje sitiada pelo que uma convenção simplificadora denomina de crise de paradigmas nas Ciências Humanas, não faria justiça a Dante Moreira Leite se deixasse de observar que realiza a crítica de inspiração iluminista no seu mais fecundo e elevado sentido: a crítica que duvida do seu objeto ao mesmo tempo em que se submete ela própria ao exercício implacável da dúvida.

Apreciando agora a validade de sua tese em confronto com algumas das tendências mais recentes observáveis no horizonte da crítica da cultura, espero melhor explicitar o que no parágrafo precedente indiquei como erros de enfoque contidos na perspectiva norteadora da sua interpretação. Uma das tendências mais frisantes é a reavaliação crítica da obra de Gilberto Freyre. Mesmo no âmbito da USP, onde foi mais forte e consistente o movimento de oposição teórica à obra do sociólogo pernambucano, observam-se fatos que claramente sinalizam uma revisão positiva. O que Dante Moreira Leite assim como outros críticos mais "científicos" repeliam na obra de Freyre como sendo inconsistente interpretação impressionista, quando não mero discurso ideológico justificador do sistema de dominação de classe historicamente instituído na sociedade brasileira, merece agora dos estudiosos qualificações críticas mais diferenciadas.

No que se refere ao âmbito específico da historiografia, caberia salientar como, paralelamente à revisão crítica que se processa em torno às obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, há uma certa retração da magnitude de Caio Prado Jr., unanimemente consagrado como nosso mais importante historiador marxista. Se ampliamos o campo de observação para a cena internacional, parecem também sintomáticos os percursos de Simon Schama, Peter Burke e Penelope Lively, historiadora convertida em celebrada ficcionista na Inglaterra. Para concluir, o fenômeno sem dúvida mais notável radica no amplo processo de revisão historiográfica denominado Nova História.

A dinâmica sob certos pontos de vista desnorteante da cena cultural contemporânea indica com clareza o que no debate acadêmico já se vai banalizando como expressão e sintoma de uma crise de paradigma nas Ciências Sociais. E essa crise é indissociável de um realinhamento geral do sistema ideológico e intelectual. Valores até há pouco ignorados ou hostilizados, como seria o caso de Gilberto Freyre, são agora considerados de um modo tal que o que fora antes visto como abuso subjetivista no plano epistemológico adquire estatuto de excelência interpretativa; o que no plano ideológico inspirava críticas acerbas, quando não puro e simples silêncio, agora é reintegrado ao horizonte crítico da cultura, como atestam o teatro de Nélson Rodrigues, o unânime reconhecimento do gênio de Jorge Luís Borges; a celebração de companheiros de viagem incômodos, como Ernesto Sábato; uma concepção de historiografia crítica liberta do compromisso de realizar a macro-história, ou ainda as grandes narrativas, como diria o epistemólogo pós-moderno François Lyotard, aderente aos feitos de uma suposta saga revolucionária inscrita na escala do tempo passado, desdobrada na linha do presente e por fim projetada na dimensão utópica do futuro.

Não obstante os erros contidos na interpretação proposta por Dante Moreira Leite, que decorrem fundamentalmente da perspectiva iluminista em que se situa, O caráter nacional brasileiro subsiste nos quadros da cultura brasileira como um dos nossos mais agudos ensaios de crítica ideológica, vertente à qual se seguiram nos anos setenta obras como Iseb - Fábrica de Ideologias, de Caio Navarro de Toledo, Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945), de Sérgio Miceli e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Além de valer pela excelência da concepção e tratamento estilístico conferido ao amplo material analisado dentro do espírito do nosso melhor ensaísmo de síntese, realiza Dante Moreira Leite uma fecunda interpretação de cunho interdisciplinar recolhendo com largo senso de propriedade crítica elementos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia, à Literatura e à História das Idéias. Disso resulta um impressivo painel no cerne do qual as insuficiências decorrentes da tese central em nada abalam a construção e o mérito da arquitetura geral da obra.
São Paulo, maio de 1995.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Olhos Negros



Olhos Negros (Oci Ciornei, Dark Eyes, 1987) é um filme livremente baseado em três contos de Tchecov: The lady with the pet dog, Anna on the neck e The name-day party. O diretor Nikita Mikhalkov, também co-roteirista, transpõe a trama e os personagens destes contos para a Itália do início do século, no esplendor da belle époque, onde engenhosamente funde-os com personagens de extração italiana.

O filme começa a bordo de um cruzeiro turístico. Aí casualmente se encontram o garçom Romano (Marcello Mastroianni) e o comerciante russo Pavel (Vsevolod Larionov). Sentados no restaurante ainda vazio, o primeiro conta sua história ao segundo, que viaja pela Itália em lua de mel. A esposa o aguarda no convés do navio. A construção da narrativa é admiravelmente arquitetada, pois ao cabo saberemos que a esposa de Pavel é a russa que Romano amou ao ponto de tramar uma história que o levou à Rússia como suposto representante de uma fábrica de vidros.

Começando pelo começo, Romano é um arquiteto fracassado e parasita. Graças a seu casamento com Elisa (Silvana Mangano), filha de um banqueiro, vive numa mansão onde desfruta dos requintes de uma rica família italiana. Sua vida foi dissipada na ociosidade e em amores volúveis, pois não passa de um mulherengo insaciável que vive às custas da mulher rica. Homem desprovido de projeto, uso o termo no sentido mais genérico possível, Romano é um Macunaíma ítalo-russo às voltas com as mais engraçadas e sedutoras estripolias.

A pretexto de curar uma doença imaginária, mais uma das suas sucessivas malandragens, interna-se numa estação de águas (spa), onde conhece Anna (Elena Sofonova), a russa com o cachorrinho. Apaixonam-se e ao se entregarem ao amor vivem todas aquelas delícias e luminosos estados de intimidade e beleza que quem assim lindamente amou bem sabe o que é. Um dia Anna desaparece sem explicação. A explicação deixa-a numa carta... em russo. Que fazer, se Romano nada sabe de russo, se ninguém à sua volta sabe russo? Por fim, procura uma professora universitária, que traduz a carta. Só então fica sabendo que Anna, segundo suas próprias palavras, sumiu por fraqueza, por medo do amor intenso que com ele vivia. Romano ouve comovido a leitura da carta e então se decide a procurá-la na Rússia. Parece enfim que o amor terá o poder de infundir-lhe energia para lutar na vida por algo: o amor de Anna. Trama com Manlio, marido de Tina (interpretada pela linda Marthe Keller), a instalação de uma fábrica de vidros. Sua peregrinação através dos labirintos da burocracia czarista rende cenas de sátira primorosa à altura das melhores páginas de Gogol e Tchecov sobre o assunto.

Quando enfim a encontra, trocadas as juras de amor previsíveis, promete-lhe ir à Itália para se tornar um homem livre e afinal regressar à Rússia para viver com ela. Quando todavia reencontra Elisa, ocupada em fazer as malas e vender a mansão, pois os prenúncios de falência antes anunciados se confirmam, Romano recai na pusilanimidade de Macunaíma. Elisa encontrara a carta em russo escrita por Anna. Pergunta-lhe no momento decisivo da trama de quem é aquela carta perfumada cujo conteúdo evidentemente lhe é inacessível. Mais precisamente, pergunta-lhe se tem uma mulher na Rússia. Romano hesita e por fim nega Anna e seu amor diante de Elisa. Esta se recompõe e rasga a carta como quem diz: está tudo resolvido e assim novamente reinará a paz conjugal.

Consumada a falência da família rica que lhe garantia sustento privilegiado e dispensadas as explicações desnecessárias ao andamento do entrecho, eis Romano reduzido à condição de garçom. É nesse ponto, como de início assinalei, que o filme começa e agora é retomado. O filme acaba no momento em que Pavel vai ao encontro da esposa, a Anna da história, para levá-la ao restaurante onde encontrarão Romano.
Para além da personagem sedutora que é Romano, as mulheres não resistem a tipos assim, ressalta no filme uma questão de fundo ético que também pontua o universo ficcional de Macunaíma. Retomo este até porque identifiquei em Romano seu correspondente ítalo-russo. A questão de fundo ético se põe, por exemplo, na relação amorosa entre ele e Anna. Embora ela fuja do amor punindo-se por sua covardia, o verdadeiro covarde é Romano, homem privado da espessura ética necessária à experiência amorosa vivida no grau de autenticidade e entrega suposta numa personagem do feitio de Anna. O contraste ético é ainda mais nítido entre Romano e Pavel. Isso fica bem claro no final do filme quando este se indigna diante do descaso com que Romano arremata sua história de amor com Anna. Romano justifica-se alegando que estamos no século 20, quando ninguém mais se importa com ninguém. É aí que Pavel o contesta de forma veemente contrapondo-lhe seu amor paciente e tenaz por Anna, apesar de anos de recusa afinal abrandados por um casamento sem amor, firmado em bases de companheirismo afetivo.

Estou tão descontente com esse relato insosso e parcial do enredo do filme que por pouco não desisto desta resenha insípida. Acentuando uma verdade estética elementar, não importa na obra de arte o conteúdo, mas sim a forma como ele é transposto para o universo das convenções estéticas. Portanto, o enredo que acabo de toscamente resumir não dá ao leitor a mais vaga ideia da beleza extraordinária deste filme. Nikita Mikhalkov logrou recriar com fina sensibilidade fílmica o universo ficcional apaixonante dos contos de Tchecov mesclando habilmente tons líricos e satíricos cujos efeitos afetam o espectador de forma comovente. Há cenas de intensidade lírica e satírica –no spa, por exemplo, assim como na mansão de Elisa e durante as apaixonantes aventuras de Romano na Rússia – que me fizeram evocar o grande Fellini de Amarcord.

Aos méritos do diretor e co-roteirista somam-se a bela fotografia do filme e o elenco marcante do qual sobressai o talento excepcional de Marcello Mastroianni. Sua interpretação de Romano, esse Macunaíma italiano, é de fato soberba. Ele contracena com verve e histrionismo insuperáveis com os atores russos nas cenas ambientadas em Sisoiev, a cidade onde reencontra Anna. A cena campestre, de insólita beleza repassada pela nostalgia profunda da canção “Nanna Ninna”, comove o espectador de forma indizível. Romano evoca a imagem remota da mãe, da infância, e assim com ele mergulhamos numa atmosfera de sonho e sortilégio que somente a mais pura arte nos propicia. Como traduzir esses momentos de pura epifania numa resenha tão insuficiente? Melhor encerrar recomendando ao leitor que esqueça a resenha e veja o filme, o que vale como uma forma discreta de admitir a irrelevância da pequena crítica em face da grande obra de arte.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Salvador, Bahia




O filósofo espanhol García Morente propõe uma útil distinção entre vivência e informação abstrata. O segundo termo da distinção não é bem este. Como no entanto escrevo longe de minha biblioteca, valho-me de expressão que tem valor equivalente, ou pelo menos exprime o que está de acordo com o meu propósito. A alusão ocorre-me a propósito de Salvador, cidade que mais uma vez visito. O viajante que não a conheça pode figurá-la de muitos modos. O mais corrente é aquele difundido pela mídia e pela indústria publicitária. Mais exatamente, pela indústria do turismo, uma das forças contemporâneas que reduziram o mundo às proporções de uma província.

Hoje todo mundo viaja por todo o mundo relatando suas viagens e façanhas para todo mundo. Afora os pobres definitivamente pobres, alguns sedentários incuravelmente preguiçosos e alguns sábios e obscuros seguidores de Alberto Caeiro, ciente de que o mundo é do tamanho da sua aldeia, o resto da humanidade passou a viajar. Isso significa que viajar tornou-se antes de tudo um transtorno, uma dor de cabeça para sedentários do meu tipo, conscientes de que a melhor viagem é ficar em casa.

Mas noto que minhas digressões incorrigíveis fizeram-me esquecer a distinção proposta por García Morente. Quem não conhece Salvador, mas supõe conhecê-la, tende a acreditar nas informações abstratas procedentes da mídia e da indústria do turismo. Assim, reduz a riqueza e variedade desta cidade a comidas típicas, baianas estereotipadas fazendo pose para os guias turísticos do Pelourinho, as festas ruidosas da cultura negra somadas a outros clichês culturais, algumas canções de Caymmi e as imagens da cidade que todos conhecem.

Longe de mim desmentir a veracidade aferível nas imagens e representações acima condensadas. Minha intenção é apenas ressaltar que não dizem o que é a cidade real, a cidade enquanto expressão da minha vivência, para lembrar ainda a distinção proposta por García Morente. A cidade de Salvador que conheço e tenho vivido durante minhas últimas passagens por aqui é uma cidade inteiramente outra. Tão outra, afirmo, que pareceria irreal ou abstrata para o turista ou aquele ávido catador de imagens recolhidas de guias turísticos e representações estereotipadas de cenários perseguidos pelos turistas do mundo. A cidade de Salvador que tenho ultimamente visitado quase que se reduz a um bairro, a Graça. Mais exatamente, a uma avenida, a Euclydes, com y, da Cunha. Aqui me entretenho com Aloísio e Isa, meus tios queridos, Gal, minha prima adorável, Márcio e Suzy, uma cachorrinha que estou aprendendo a amar. Como nunca é tarde para a gente se corromper, afeiçoei-me a Suzy como me afeiçoaria a uma amiga de língua e hábitos intraduzíveis.

Diante do que já viajei sem pôr os pés fora do apartamento ou da minha privacidade, fica já evidente que não sirvo como guia nem mapa para quem queira viajar ou precise figurar dentro de si próprio uma ideia qualquer de Salvador. Aprendi desde muito que a viagem real que empreendo é a viagem por dentro de mim próprio, a viagem que dentro de casa me transporta ao mundo, assim como a viagem literal, a que nos perde por ruas e cidades, leva-me de volta para mim próprio.

Mas nem tanto à casa, como pareço sugerir, nem tanto ao mundo, que aparento depreciar. Na verdade, ando pelas ruas e nisso encontro muito prazer. Apesar das suas muitas ladeiras, que de algum modo me recordam as de São Paulo onde à deriva das ruas tanto suei e por vezes até me fatiguei, descortino novas paisagens, detalhes da vida e de fachadas antes desconhecidas ou simplesmente despercebidas. Recordam-me ainda Atenas e muito da topografia grega que bem me ajudaram a compreender porque os gregos inventaram os jogos olímpicos.

Também converso com gente, essa gente que vive e precisa viver nas ruas por dever de ofício ou simples hábito, ou ainda modo pessoal de ser. Aprecio saber um pouco da vida da cidade a partir da perspectiva dessa fração obscura dos seus habitantes: o porteiro, o zelador, a doméstica, o jornaleiro da praça, também o da esquina, o taxista, os que desempenham funções subordinadas nos shoppings e supermercados. E como não seguir com o olhar fascinado a beleza negra da mulher baiana, a beleza mulata, a beleza branca ou loura, tantos modos de beleza e sedução que transitam pelas ruas por vezes anunciando sua iluminadora passagem (afinal, como esquecer que baiano não nasce, estreia, como escreveu Ivan Lessa?), por vezes alheia ao olhar que a segue e se perde no fluxo sem repouso das ruas?

Noto agora que a crônica pede já para acabar e no entanto nada sequer mencionei do que seria previsível em qualquer relato de um viajante pela cidade de Salvador. É compreensível que, depois do que acima escrevi, o leitor se desiluda de esperar alguma alusão ao elevador Lacerda, ao mercado Modelo, ao Pelourinho, ao centro histórico com suas magníficas fachadas coloniais, ao acervo precioso do nosso passado barroco... O que talvez pareça espantoso, senão inadmissível, é o fato de chegar aonde cheguei sem pingar uma onda do mar da Bahia, do mar de Jorge Amado e Caymmi nestas linhas áridas. Ademais, não obstante a disponibilidade vigilante de minha prima Gal, resisto ainda a visitar a Exposição Rodin, a Fundação Pierre Verger, a Fundação Casa de Jorge Amado, a Aliança Francesa...

Como compreender ou admitir que o viajante, não importando o quanto viaje através de si próprio, suprima o mar desta cidade tão cenográfica e oceânica? Mas que posso eu acrescentar numa crônica doméstica ao mar cantado por Caymmi, ao mar de Jorge Amado que tão indizivelmente desatou minha imaginação de leitor adolescente? Melhor, portanto, deixar que o leitor viaje a seu modo, com ou sem guia turístico, pondo de lado esse viajante excêntrico que sai de casa para continuar fechado na sua própria casa, ainda quando a casa seja alheia. Tudo que me resta é dar razão ao leitor. Não bastasse tanto, concluo com uma volta na fechadura que sem dúvida o convencerá de que sou definitivamente um turista ou viajante perdido: a melhor viagem é sempre viajar sem sair de casa, ou viajar para logo voltar para casa.
Salvador, 10 de fevereiro de 2011.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Amor Memória




Não a vejo há mais de 17 anos. Dizem que envelheceu. Quem não? Somos tão inconscientes do tempo, sobretudo do que desbota nosso narcisismo, que de ordinário aludimos à passagem do tempo apenas no corpo do outro. Também eu envelheci, também sobre mim o tempo tem desenhado o vinco errático de sua passagem. Minha faxineira, uma velhinha jovial e admiravelmente conservada, logo se encrespa se a lembram de que tem já 85 anos. Na verdade, a lembrança ou a alusão mais casual a esse fato indesejável atinge-a como uma denúncia, se parte de alguém que ama, ou como uma ofensa imperdoável, se procede de quem lhe inspire desagrado ou aversão.

Mas dizia eu que envelheceu. Perdi-a de vista por muito tempo. Para ser preciso, desde que nos separamos. Voltei eu para o Brasil, ela para a Espanha. Cada um regressou a seu terreiro ou país. O amor que tão poderosamente nos ligou – e ainda nos liga, posso com certeza dizê-lo falando de mim – foi fruto de um feliz acaso. Fui a uma festinha de aniversário de uma amiga e lá nos encontramos. De repente, uma felicidade intensa e absolutamente imprevisível desceu sobre minha confortável solidão. De repente, Londres já não era Londres, a cidade habitual que a rotina e os passos previsíveis e as ações programadas converteram numa extensão da casa onde cada coisa tem seu lugar, cada cartografia suas coordenadas, cada metro sua medida. De repente, Londres transfigurou-se num mar aberto, numa paisagem ensolarada, num campo sobre o qual sua sombra imensa e amorosa se projetava e me habitava.

Durante alguns meses vivemos um amor intenso e miraculosamente harmonioso. Amores passionais são de ordinário turbulentos, ou pelo menos expostos a variações climáticas perturbadoras. Não o nosso. Sonhava há muito, sintoma talvez de minha busca deliberada de uma vida regida pela balança com os dois pratos equilibrados, um amor assim: o amor intenso e todavia harmonioso, o amor paixão medida, como escreveu Drummond ao cunhar o belo título de um livro menor que o ideal expresso no seu nome de batismo.

Os românticos amam desgovernados pelo excesso, amam como um sol sem crepúsculo, um poço sem fundo, um movimento sem pausa. Decerto vai em todas essas imagens algo de caricatura do ser romântico, mas sob as tintas da desmedida pulsa a verdade desse modo de amor. O que sei, falando de mim, é que essa desmedida, esse desgoverno da paixão me é estranho. Superados os excessos da juventude, quando no geral amamos possuídos pelo excesso romântico, passei a desejar o amor paixão medida, como acima assinalei.

Foi esse modo de amor que com ela tive a ventura de viver. Por isso nunca brigamos, nunca nos desavimos, nunca nos chocamos naquele tipo de cena tão comum no amor dos românticos: a cena da briga, idealmente logo seguida da reconciliação arrebatada. Há românticos que tanto cultuam esse ideal de convívio amoroso, feito de choques e reconciliações exaltadas, que suspeito com frequência provocarem esse tipo de situação, ainda quando da boca para fora deplorem as turbulências, não raro jurando de pés juntos que amor é compreensão e harmonia. Pois acreditem que assim foi o nosso.

Por que afirmo ainda que a amo? Afinal, mais de 17 anos passaram áridos de qualquer contato direto ou mera notícia de vida. Como explicar que amor tão pleno e harmonioso, tão invejavelmente regulado na medida da sua paixão, tenha sobrevivido sem um gesto de aceno explícito, um sopro de palavra, um testemunho de inequívoca confirmação? Para mim a explicação é simples: o amor sobrevive na memória generosa do amante. É lá, nesse lugar sem espaço e espelho, por vezes silencioso na sua pulsação inapreensível, que o amor se confirma na sua permanência. E assim sendo nada pede nem mais dá de si, pois seu modo de duração é o que sobra dos atos e vivências consumadas.

O amor memória nada dá nem pede porque ele é o fruto generoso do que foi. Sendo assim, não encerra promessa de futuro. Pelo menos, nada promete. Ele é a duração suficiente do que já se dissipou enquanto ato, enquanto expressão viva e atual de vida. Quem puder que o entenda, ou simplesmente o reconheça e aceite tal como toscamente aqui o desenho. Aliás, duvido que o entendam e de resto o aceitem na sua natureza que transtorna nossa noção convencional de tempo e realidade.

As mulheres sobretudo, a julgar por tudo que inutilmente tentei explicar-lhes, resistem à aceitação de um modo de amor que é quando já deixou de ser e não mais aspira a qualquer esperança ou simples tentação de renovar-se no outro factualmente perdido. Que fazer para persuadi-las de uma verdade que em mim vivo como verdade indisputável? Resta-me apenas resignar-me a aceitar que cada um ame como sabe, como pode e como representa o amor, essa pérola que tão pouco reconhecemos, tão pouco cultivamos e tão frequentemente dissipamos.
Salvador, 8 de fevereiro de 2011.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Tatuagem na Nuca


Tatuagem na Nuca
Severo Machado

Odeio tatuagem. Odeio essa gente que se mutila com tatuagem, piercing e outras formas mecânicas de mutilação. Se querem ser mutiladas - vou falar apenas do corpo feminino, pois é o que me interessa – que usem meios humanos de mutilação. Quero dizer, entreguem-se a um Marquês de Sade, ou a qualquer desses machos que gostam de maltratar mulher na cama.

Zoca Porrada, policial típico do Brasil, gosta é de mutilar bandido nas celas da delegacia. Diz ele que não gosta. Apenas cumpre seu dever, que é zelar pela segurança de gente como eu. Zoca nunca ouviu falar de gente como Freud e faz muito bem. Como todo ser humano típico saudável na inconsciência da vida que vive isenta de um ponto de interrogação, Zoca simplesmente age e vive. Pensar, diria ele se pensasse, é algo que deixa a serviço de intelectuais parasitas e acadêmicos delicados.

Perdi de vista a tatuagem. Entrei na delegacia, ouvi os gritos do bandido sendo castigado por Zoca e eis que perdi de vista a tatuagem. Felizmente, voltando à rua, vi uma gostosa desfilando uma tatuagem horripilante que escorria pelos braços e se alongava até às costas. Somente a nudez sabe onde acabava. Andava como se fosse o centro do mundo. Talvez por isso mutile o corpo de forma tão boçal. É o único meio que encontra para chamar a atenção dos desatentos. Como disse, odeio tatuagem.
Antonio Senile, lírico incorrigível, sonha uma amante com uma tatuagem microscópica e luminosa bem no centro do olho. Uma tatuagem que fosse um raio de sol irradiando luz no centro do olho que ele beijaria como um devoto no altar da beleza. Como observei, Senile é um lírico incorrigível. O diabo é que é meu amigo, meu único amigo. E de um amigo, sobretudo se é único, a gente tolera coisas que nunca imaginou tolerar. Também Luciano Oliveira é meu amigo. Mas este é um trator esmagando o roseiral do jardim lírico de Senile. Lirismo e tatuagem? Somente na imaginação de Senile. O que a tatuagem me inspira é ódio.

Mas eis que um dia ela entrou na piscina onde faço hidroterapia.Dizem minhas más línguas (são muitas, pois tenho o dom de inspirar inimizade e ódio) que vou à hidro para curar reumatismo. Envelhecem-me e envilecem-me mais que o calendário e as forças ativas do meu corpo. Que fazer? Ela entrou na piscina e de imediato senti que entrara, embora estivesse de costas para ela. Senti que era ela e que não era uma mulher qualquer porque uma vibração súbita correu-me o corpo da raiz do cabelo à ponta do pé. Deus dorme e o demônio anda à solta, é o primeiro e excitante pensamento que me ocorre quando sinto o choque dessa vibração. Traduzindo na linguagem do comércio miúdo: aí tem coisa... Completando as reticências: aí vem mulher morena, rabuda e gostosa. Sei que o leitor vai torcer a cara, se antes não deletar meu blog. Ou delatar. Se for um pouco paciente, resmungará: cronista sem imaginação. Repete sempre esse mote. Mas o mal, acreditem, não está no cronista, ou na sua falta de imaginação. O mal (bem, para mim) está na minha monomania, na minha fixação erótica em mulher morena, rabuda e gostosa. Pronto, voltei a me repetir.

Postou-se a meu lado na piscina e logo começou a agitar a água instruída pela fisioterapeuta sobre a sequência dos exercícios. Por que logo a meu lado, se a piscina é tão grande? Só pode ser maquinação do diabo, que me atormenta sempre que uma mulher dessas cruza meu caminho. Como sou tímido, aprendi a ser ousado, isto é, vou entrando sem bater à porta ou pedir licença. Seu nome? Bruna. Nome de puta. Quero dizer: na minha imaginação perversa. Basta-me ouvir o sopro desse nome e logo vejo a Bruna do site Garota Nacional. Ligava para o celular dela e logo marcava um encontro no motel. E agora tenho outra Bruna a meu lado, agitando a água da piscina enquanto seu corpo agita minha imaginação atormentada pela força da carne. Depois de cinco minutos já sabia que era agente de turismo e, repisando o previsível, adorava viajar. Parecia uma Geisy Arruda morena com todas as peças nos devidos lugares.

De repente outro choque: prendeu os cabelos numa touca plástica e então vi a tatuagem. Minha reação imediata foi de aversão e ódio. Mas logo emendei o soneto, como diria Antonio Senile. A tatuagem era uma maçã tão meticulosamente desenhada, tão bem cravada na nuca de linhas perfeitas que logo senti um outro choque, mas agora de natureza completamente oposta: descobri que adorava aquela tatuagem. Então disse algo que somente um tímido irreparável ousaria dizer: posso morder sua maçã? Não pode porque é do meu marido. E daí? Não sou nem um pouquinho possessivo. Ela riu o riso de consentimento das mulheres que tratam seu corpo como uma propriedade comunal. Taí um caso em que sou comunista até a última maçã.

Saímos da piscina para uma pizzaria dessas que mais parecem um refeitório de reformatório. Ideia dela, frequentadora desses ambientes que jamais recomendaria a meu pior inimigo. Pensando na tatuagem e na maçã de Bruna, reconheci que faria qualquer coisa para mordê-la, até jantar numa pizzaria daquele tipo. Enquanto ela devorava avidamente o prato da casa, limitei-me a mastigar um nada, pois minha fome era morder a maçã da sua nuca. Parou de mastigar apenas para dizer que o marido era muito ciumento. Por que todas as mulheres que gostam de trair tanto insistem em dizer que seus maridos são ciumentos? E daí, meu amor? Eu não sou. Ganhei outro riso manchado de pizza com molho de tomate nos lábios carnudos.

Até o leitor sem nenhuma imaginação, como Antonio Senile, pode bem adivinhar qual foi nossa próxima e última parada. Como jamais confundo invasão de privacidade com evasão de privacidade, deixo que o leitor imagine o que aconteceu no motel. O que acrescento, já vestindo as calças, é que continuo odiando tatuagem. Acrescento a tempo que também odeio maçã. Mas por uma mulher como Bruna eu faria qualquer sacrifício. Será que é mesmo casada?
Recife, 6 de janeiro de 2011.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Edu Lobo Bossa Recife


O documentário Vento Bravo (2007) começa com duas cenas muito significativas que, enquanto tal, anunciam duas referências fundamentais para nosso conhecimento da música de Edu Lobo: a premiação de Ponteio, talvez o triunfo supremo da sua carreira; o sentido seminal do Recife, sua cultura e paisagem, na sua formação. No andamento desta cena, com Edu a bordo de um carro transitando contra o fundo da paisagem tropical recortada pelos coqueirais e o mar invisível, mas já insinuado na imaginação do espectador, a tela é invadida pelos sons de Candeias. A cena desdobra-se na projeção da sombra movente de Edu sobre a areia úmida e por fim se alarga no plano geral do mar com seus tons verde-azulados, barcos à vela cortando as águas. Logo Edu é enquadrado no mundo da sua infância, no Recife e suas extensões litorâneas.

A música de Edu e a forma como desde o início ele a situa nas raízes da sua memória e experiência ilustram uma verdade corrente na história da arte: a função seminal da infância na criação estética. Embora nascido no Rio de Janeiro, toda a sua infância significativa foi vivida no Recife, onde passava férias deleitando-se na atmosfera absorvente da família. Esse é de resto um traço profundo da história social recifense, por extensão nordestina: a dominadora presença da família ramificando-se numa rede de parentes, amigos e outras forças humanas agregadas e agregadoras. A isso somaram-se os ruídos dos pregões de rua, um deles aliás incorporado a uma das composições de Edu: Cordão da Saideira, o mais belo e lírico frevo que conheço. O fato é que o menino Edu Lobo impregnou-se dessas vivências da infância mais tarde convertidas em memória afinal recriada em som e arte. Ele as rememora, as vivências, em muitas passagens do documentário: Caruaru e suas ruas ruidosas cortadas pelos sons agudos das bandas de pífanos; Itamaracá e Pontas de Pedra, Candeias e o esplendor da lua cheia espelhada no mar; cirandas e maracatus; frevos e troças, tudo inundou a imaginação encantada do menino nele fermentando o solo onde anos mais tarde teceu seu mar de sons e poesia. Lembrem Cirandeiro (letra de Capinam), pérola injustamente esquecida evocada por Maria Bethânia numa cena do filme.

Carioca cuja juventude foi vivida à sombra imperiosa da Bossa Nova e de Tom Jobim, expressão suprema das duas gerações musicalmente mais importantes da música brasileira, a da Bossa Nova e da MPB desmamada nos festivais de música e no clima turbulentamente criativo de resistência cultural à ditadura militar, Edu admite que não teria chance de se afirmar como artista diante de Tom, Baden Powell, Carlos Lyra e outros valendo-se dos recursos de criação musical que estes dominavam. Assim, a via de expressão estética que emprega, a regressão ao mundo da sua infância recifense, foi também uma estratégia de sobrevivência num clima de extraordinária competitividade. A propósito, o crítico Tárik de Souza lembra que Edu entra na atmosfera musical da sua juventude através de Luiz Gonzaga e do acordeon. Outros, como Eumir Deodato, trilharam caminho semelhante.

Edu se afirma, portanto, integrando à sua música duas linhas de influência diferenciadoras e aparentemente antagônicas: a Bossa Nova, de extração carioca, urbana e visada internacionalista, e a música de procedência pernambucana impregnada de tradição rural, regional, e forte sentido de participação social. Foi esta, em síntese, a assinatura que acrescentou ao clima musical da época concorrendo de forma decisiva para desenhar o ponto de ruptura entre a Bossa Nova e a música que passa a ser sumariamente identificada como MPB: a música que explode nos festivais assaltados pelo espírito de competição estética e ideológica exacerbada pela inserção da música popular na máquina de consumo de massa que reponta na cena cultural brasileira em meados da década de 1960.

Edu representa de forma singular a cultura migrante que tanto vincou a formação cultural brasileira. Filho de Fernando Lobo, jornalista pernambucano que migrou para o Rio de Janeiro como tantos outros pernambucanos e nordestinos de talento, engrossou a corrente que desdobra no terreno musical uma tradição enraizada na literatura desde o século 19. Bastaria pensar em José de Alencar, Joaquim Nabuco, Franklin Távora, Sílvio Romero, Aluísio de Azevedo e muitos outros. No século 20 a corrente cresceu transportando sobretudo para o Rio de Janeiro, capital cultural e política do país, quase todos os talentos destacáveis na arte e na literatura.
Edu Lobo ouviu Chega de Saudade pela primeira vez quando de uma de suas férias em Recife. Acentua no documentário o sentido de choque estético que isso representou na sua vida. Passados já tantos anos, é difícil para um jovem de hoje avaliar o sentido radicalmente inovador desta música. Afinal, depois que o novo se rotiniza perde-se a dimensão de ruptura estética que introduz nos códigos dominantes. Ao evocar esse fato Edu reitera o sentido geracional simbolizado na primeira audição de Chega de Saudade. Quando tiveram a oportunidade de pronunciar-se sobre este assunto, também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque reiteraram o sentido de choque estético expresso no depoimento de Edu. É provável que outros companheiros de geração, se acaso também se pronunciassem, repetissem a mesma história com as variações de ênfase e forma inevitáveis.

Outra experiência de cunho geracional liga-se ao fenômeno das casas abertas, pontos de agregação musical característicos da época em que Edu e seus contemporâneos ingressaram profissionalmente na música. Há quem diga que o símbolo maior dessa forma de associação artística era a casa de Vinícius de Moraes. Edu procura traduzir, também seu parceiro Paulo César Pinheiro, o que isso representou para seu acelerado desenvolvimento como músico. Antes de tudo, prevalecia naqueles grupos livremente compostos um sentido de gentileza, outros em contexto semelhante empregam o termo delicadeza, que definitivamente desapareceu do horizonte da nossa experiência social hodierna. Além de uma intensa e fecunda interação de artistas provenientes de diferentes formas de expressão artística, o convívio era pautado por um espírito de generosidade e senso comunitário impensáveis nos quadros do capitalismo ferozmente competitivo em que passamos a viver, competitividade exasperada pelo narcisismo que permeia todas as nossas relações sociais.

Outro tema interessante introduzido no documentário é o da relação entre Edu Lobo e a Tropicália, a grande explosão inovadora que sucedeu a Bossa Nova provocando reações de perplexidade e conflito nos círculos da MPB. Edu afirma que nunca brigou com a Tropicália. Enfatiza seu ponto de vista esclarecendo que gostava de tudo que Caetano Veloso e Gilberto Gil faziam desde que passou a conhecer o trabalho de ambos. Ressalta, no entanto, seu desagrado diante do caráter teatral do movimento, que na verdade traduzia a astúcia com que Caetano e Gil, narcisistas consumados, souberam explorar os novos recursos de projeção e sucesso forjados pela cultura de massa. É fácil imaginar que Edu, até por força de seu temperamento, do seu modo de aparecer como artista, não teria nenhuma afinidade com o que os baianos faziam na mídia, que então era outra coisa. Edu acrescenta – com razão, assim penso – que o grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina tinha importância musical muito superior à Tropicália. Entretanto, pouco se fala disso, pouco se reconhece esta verdade nos estudos históricos relativos à música brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Talvez nada melhor traduza a diferença de temperamento e modo de manifestação pública da atividade artística entre Edu e os baianos da Tropicália do que sua renúncia deliberada a ser um grande astro da música brasileira ou um pop star. No auge da sua fama como compositor e intérprete, depois de vencer dois dos festivais de música da época, sobretudo o de 1967, sem dúvida o mais importante dentro deste importante capítulo da história da música popular brasileira, Edu larga tudo e vai estudar música em Los Angeles com Albert Harris. Esta é uma das evidências da superioridade de sua formação técnica e estética se o comparamos à maioria dos grandes compositores brasileiros. As cenas relacionadas à longa temporada de estudos em Los Angeles são pontuadas por uma de suas mais belas composições: a jobiniana Quase Memória. Sugiro ao leitor que a ouça com o outro ouvido sintonizado em Saudade do Brasil, do nosso maestro soberano.

Edu renunciou à fama já consolidada para fazer de si próprio um músico de formação refinada e exigente, um artesão supremo das formas musicais. Nesse sentido, é também sintomático seu reconhecimento de Tom Jobim como nosso compositor supremo. Como bem lembrou, Tom, assim como Villa-Lobos, é o tipo de compositor que obriga seus pares, ainda quando não o queiram ou saibam, a trabalhar, a fazer melhor. Se a memória não me trai, numa outra ocasião, falando de Tom em escala universal, distinguiu-o como um dos cinco maiores compositores populares do século 20. Isento de qualquer viés nacionalista, diria que é talvez o melhor. Comparáveis a ele são George Gershwin e Cole Porter, cito apenas os que primeiro me vêm à mente, mas penso que Tom é ainda melhor que ambos.

Espanta-me que o autor de letras como as de Cordão da Saideira e Candeias tão pouco se tenha aventurado a escrever a letra de suas próprias composições. Talvez o excesso de rigor, o perfeccionismo do artista consciente de que arte é antes transpiração do que inspiração, tenha refreado o letrista de talento lírico notável que é Edu Lobo. O fato é que teve muitos parceiros. Alguns, como Paulo César Pinheiro e Joyce depõem no documentário. Sabemos que seu parceiro mais constante e sem dúvida supremo é Chico Buarque. Como seria previsível e justo, Chico contracena com Edu em boa parte do filme. Talvez apenas a parceria Tom Jobim e Vinícius supere a de Edu e Chico. De certo modo, isso afeta negativamente a grandeza musical de Edu em termos de reconhecimento público. Afinal, que parceiro poderia competir com Chico? Edu fica injustamente rebaixado a um plano tão secundário que ouço gente de bom gosto e bem formada aludindo a Beatriz e outras composições de ambos como se fossem de autoria exclusiva de Chico. Dando a Edu o que de justiça cabe a Edu, tenhamos a consciência de reconhecer que, dentre todos os seus companheiros de geração, nenhum manteve o alto nível de qualidade criativa que ele manifestou dos anos 1990 para cá, exatamente quando alguns dos seus competidores mais talentosos começaram a dar sinal de perda de força criativa.

Nota: direção e o roteiro do documentário: Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Recife, 25 de janeiro de 2011.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Montaigne, nosso contemporâneo


Penso que poucos autores clássicos comunicam ao leitor um tão vivo e envolvente sentido de contemporaneidade quanto Montaigne. E no entanto, como bem sabemos, mais de quatro séculos nos separam da sua obra que justamente figura no cerne do cânone da cultura ocidental. Quantos dos seus contemporâneos e pósteros resistem ao teste de leitura aqui sugerido? Se penso, em contraste, em muitos dos clássicos ibéricos e brasileiros, o que de ordinário sobressai é uma sensação de tédio ou anacronismo. Montaigne, no entanto, como Shakespeare, permanece vivo e extraordinariamente atual.
Montaigne foi um cético entre fiéis. Sei que forço um pouco a nota, como adiante demonstrarei, mas confesso não resistir à tentação da frase que muito diz da sua singularidade na contracorrente da intolerância religiosa e cultural que tanto vincou o seu tempo. Montaigne viveu durante grande parte de um século, o XVI, dilacerado por duas experiências históricas terríveis: as guerras religiosas, que na França foram de extrema ferocidade, e a descoberta do Novo Mundo da qual resultou o extermínio ou escravização das culturas indígenas notadamente por portugueses, espanhóis e ingleses.

Montaigne é no geral reconhecido como filósofo, embora um historiador da filosofia como Bertrand Russell mal cite seu nome num volume abrangente que de forma espantosa dedica um capítulo inteiro a Byron. Se entretanto o leitor figura um filósofo ou um escritor de alcance e interesse filosófico, como é o seu caso, supondo nele encontrar uma filosofia concebida como um sistema coerente e integrado de explicação do mundo, certamente lhe recusará essa designação. Sua obra capital, Os Ensaios, é antes de tudo fundadora de um gênero literário de catalogação imprecisa: o ensaio.
O termo “essai” no original francês, assim como em português, significa ensaio, experiência, prova, tentativa. Nele, assim como nos seus correspondentes que acabo de registrar, sobressai o sentido associado a um gênero de exposição fundado na imprecisão do seu alcance e características. A imprecisão do termo fica evidente em diferentes línguas que preservam essa imprecisão semântica como nota distintiva ao ponto de designar tanto uma dissertação acadêmica ou uma mera redação escolar, é o caso do essay inglês, quanto livros das proporções de Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, como Gilberto Freyre idiossincraticamente designa suas duas obras fundamentais.

O ideal de Montaigne, como apropriadamente observa Peter Burke num livrinho precioso de introdução à sua vida e obra, era o do amador, o do diletante. A generalização da cultura utilitária e mercantilista imposta pelo desenvolvimento do capitalismo levou ao descrédito estes termos que originalmente traduziam uma vinculação profunda, amador é aquele que ama, entre o sujeito e seu objeto, o apreciador e a coisa apreciada. Noutros termos, a profissionalização e a especialização decorrentes da mentalidade capitalista e do acúmulo assombroso das técnicas e saberes humanos tornaram o amador e o diletante figuras anacrônicas, dignas até de desprezo.

É difícil justificar integralmente o título que conferi a este artigo. Mas é possível anotar algumas características de Montaigne e de sua obra que me parecem plenamente justificar sua contemporaneidade. Como acima assinalei, ele foi um cético entre fieis que em nome da fé entregaram-se cegamente à intolerância religiosa mais sanguinária e feroz. O episódio da guerra civil francesa conhecido como a noite de São Bartolomeu, recentemente representado em dois filmes de época ambos de produção francesa (A Rainha Margot e Henrique IV), sugere a brutalidade da guerra religiosa na qual católicos e huguenotes (como eram designados os calvinistas franceses) se entredevoraram. Embora católico confesso, Montaigne não aderiu ao espírito beligerantemente intolerante que marcou o clima espiritual da época.

Convém todavia ressaltar que Montaigne foi também um homem do seu tempo. Preciso repisar esta trivialidade num artigo que visa salientar sua singularidade e contemporaneidade. Do ponto de vista religioso, por exemplo, ele endossa muito do pensamento católico ortodoxo. Vivendo numa época cruamente dividida entre católicos e protestantes, opôs-se à tradução da Bíblia para o vernáculo. Enquanto o espírito da Reforma introduziu a instauração da livre interpretação do texto sagrado, fato que concorreu para a disseminação de muitas seitas e conflitos, o clero ortodoxo, nesse ponto apoiado por Montaigne, manteve com severidade ainda maior o monopólio da interpretação da Bíblia. Acrescentaria que o princípio da livre interpretação da Bíblia instituído pelos protestantes também concorreu para difundir a alfabetização, bem tão retardatariamente introduzido na política educacional brasileira, e fortaleceu as bases da subjetividade moderna da qual Montaigne constitui, aliás, uma de suas mais altas e singulares manifestações.

Montaigne chegou mesmo ao extremo de afirmar: “Acredito que o objeto branco que vejo é preto se esta deve ser a decisão da hierarquia da Igreja” (apud Peter Burke, Montaigne, p. 37). Ora, como compreender tamanha sujeição ao poder religioso num homem notável por seu ceticismo, pela liberdade excepcional com que expressou sua subjetividade crítica? Peter Burke sugere uma explicação curta e irônica: “Afinal de contas, os céticos sabiam que não se podia confiar nos sentidos” (idem, ibidem). Ao mesmo tempo, considerando-se o poder exercido pela religião, notadamente dentro do clima de guerra civil desencadeado por católicos e protestantes, teve ele a audácia de questionar determinadas formas de milagre sancionadas pela Igreja, o sentido religioso da providência e da bruxaria, além da autenticidade da oração praticada por muitos fieis (ver o ensaio LVI: “Das Orações", Livro Primeiro). Estas e muitas outras questões perigosas e controvertidas foram examinadas por Montaigne nos seus ensaios com um senso de originalidade e heterodoxia somente concebíveis num espírito extraordinariamente livre.

Diante disso, como decidir se Montaigne era cético ou católico, ou mais uma coisa que outra? A própria natureza do gênero que fundou, o ensaio, já contém uma dose substancial de ambiguidade. Ensaiar algo, como acima ressaltei, é proceder a uma tentativa, a uma experiência aberta, portanto incompatível com argumentos e conceitos fechados, por definição impermeáveis à dúvida e à controvérsia. O ensaio, em contrapartida, é por definição avesso à fé dogmática, à verdade inquestionável e definitiva. A esses sentidos do termo acrescentam-se expressões chave empregadas por ele que acentuam ainda mais o caráter deslizante, a indeterminação semântica de muitos dos seus juízos atinentes à religião, aos costumes, ao poder, à condição humana... Como todo espírito excepcional, Montaigne não deve nunca ser lido literalmente, nunca seguido ou interpretado de forma unilinear ou absoluta. Assim como Machado de Assis, outro ambíguo sumamente astuto, afirmava ter por princípio nunca ser ludibriado, ou empulhado, para usar seu termo próprio, também deve o leitor prevenir-se para nunca ser traído pelo caminho mais fácil, a interpretação mais convencional ao ler os ensaios de Montaigne.

A obra de Montaigne é em muitos sentidos única e pioneira na história da filosofia e da literatura. Cada ensaio varia na extensão e na temática permeada de digressões que não raro desnorteiam as expectativas do leitor. Falando antes de tudo de si próprio, como frisa no breve prefácio da obra, Montaigne ilumina nossa condição humana com um senso de propriedade, argúcia e bom senso inusitados no conjunto da tradição filosófica. Para ele, nenhum assunto era em si irrelevante ou indigno do crivo de seu escrutínio sempre agudo. Por isso variava das observações referentes a trivialidades como a limpeza dos dentes e a defecação disciplinada dos seus intestinos às reflexões sobre a morte e o suicídio, da ereção e do medo da impotência sexual ao refinado senso com que descrevia a desconcertante diversidade dos costumes humanos. Como agudamente ressaltou, o que há de mais universal na espécie humana é precisamente sua diversidade. Embora nesse ponto por vezes bordejasse o relativismo tão corrente no nosso tempo, Montaigne era universalista ao ponto de saber que a justa apreciação de si próprio condensava em escala individual as características fundamentais do gênero humano.

Afinal, que voz é essa que atravessa as camadas inapreensíveis dos séculos que delas nos separam para iluminar as linhas turvas e atordoantes do presente? Ela afirma e confirma a possibilidade da subjetividade autônoma mesmo em tempos adversos. A voz de Montaigne é uma evidência de que é possível preservar nossa liberdade última em face da guerra civil e da intolerância religiosa, como sucedeu no seu tempo. É também possível preservá-la sob um Estado autocrático, como foi o caso da Rússia anterior à Revolução de 1917 e também sob um Estado totalitário como o soviético fruto da revolução que destruiu a autocracia czarista. Ela é também possível na democracia da sociedade de massas como a que regula nossas vidas manobradas por um capitalismo que tudo converte em mercadoria. Tudo que precisamos para afirmar nossa liberdade contra todas essas formas de opressão é de um quarto de fundo apenas para nós (“une arrière boutique toute nostre”, como ele escreve) onde se instale nossa subjetividade.

O quarto ocupado por Montaigne era a torre circular que abrigava sua biblioteca cujo repertório do humanismo clássico alimentou sua singularidade. Em certas circunstâncias, como um pouco anotei neste artigo, Montaigne precisou negociar com os poderes do mundo, poderes bem maiores que os da sua consciência. Mas cedia resguardado pela astúcia e a clarividência que lhe preservavam o fundo subjetivo irredutível ao comércio compulsivo imposto pelas regras do convívio humano. Lá dentro, no recesso da sua subjetividade inacessível aos poderes do mundo, ele continuava dizendo não.

Os contemporâneos de Montaigne são, diria agora concluindo, os que preservam a autonomia do seu quarto inacessível ao som e à fúria do mundo do Big Brother Brasil e todo o lixo cultural que avilta e aliena as massas colonizadas por esse capitalismo sem alma que é tudo que logramos construir como forma sustentável de organização do sistema produtivo nas sociedades humanas. Isso diz muito, talvez o bastante, sobre o cerne incivilizável da nossa condição humana. Montaigne, como Freud, Machado de Assis e outros céticos impenitentes, não se enganava sobre essa verdade crua que o humanismo de tons amenos e idealizadores intenta empurrar para debaixo do tapete.

Os contemporâneos de Montaigne são aqueles investidos da consciência e da lucidez de viverem au-dessus de la mêlée, diria recorrendo ao seu idioma. Traduzindo a expressão no tom digno da barbárie que sitia nossa liberdade sempre ameaçada: os contemporâneos de Montaigne são os que aprenderam a viver acima da lama.
Recife, 31 de janeiro de 2011.
Ler também:
http://http://fmlima.blogspot.com/2011/03/montaigne.html