domingo, 6 de janeiro de 2013

Elogio da mediocridade


Sou um tipo de qualidades extraordinariamente medíocres. Nasci medianamente num meio-dia meio sol e meio chuva de um meio de ano perdido bem no meio do século. Filho mediano entre quatro irmãos, logo me fiz notar por traços mediocremente tímidos numa infância medianamente intimidada. Jogando futebol no meio do campo, não foi difícil tornar-me titular de um time mediocremente classificado, aquele tipo de time que, se nunca ganha um título, também com certeza jamais é rebaixado à humilhante posição de lanterninha.
Ocupando sempre um ponto médio entre a tela e o fundo do cinema, entreguei-me aos filmes e estrelas de Hollywood com uma paixão medianamente controlada. Minhas musas eram, claro, mulheres medianas na estatura e no talento, na beleza e no ardor com que beijavam em cena. Tanto é isso verdade que, sem subirem ou descerem na apreciação do gosto público, hoje estão completamente esquecidas. Em mim próprio, embora medicremente fiel, confesso que se tornaram imagens mais ou menos apagadas.
Mediocremente casto, perdi a virgindade muito cedo, mas em compensação curti na adolescência os rigores repressivos de uma época em que menina de família era forçada a casar virgem. Portanto, paquera e namoro, por mais longe que fossem, raramente iam à via dos fatos tão febrilmente desejados. Minha mediocridade lírica, teimosa de transfigurar até a humanidade das putas, salvou-me da corrupção que foi e é timbre do machismo que se espoja nos puteiros e antros similares. Mais tarde, é verdade, caí na esbórnia desatada pela revolução dos costumes. Sempre equidistante dos extremos, como bom medíocre, saltei a tempo da canoa furada quando tive a graça de encontrar um grande amor. Por que não dizer o grande amor?
Em tudo mais tenho sido de extraordinária constância no exercício de minha mediocridade. Leitor mediocremente aplicado, leio sempre à meia-noite nos dias em que me ocupo a meio do dia. Professor mediocremente considerado, dou de mim o melhor, minha medíocre pedagogia, visando desencorajar os alunos irrecuperáveis enquanto de outro lado procuro estimular os raros excepcionais.
Aludindo ainda à minha medíocre condição de leitor, encontrei uma solução inventiva para o exercício da leitura fiel a meu princípio vicioso da mediocridade. Já que a leitura integral de uma obra é incompatível com o meu princípio, aprendi a ler os livros pela metade: leio primeiramente as páginas ímpares, por fidelidade à minha formação de esquerda, em seguida as pares. Por fim, cuido de fundir umas nas outras e disso resulta uma obra absolutamente irreconhecível, além de mediocremente original.
Mulheres passionais queixam-se da minha brandura amorosa sempre a um calibrado meio termo entre a paixão e a amizade. Profissional discreto, mediocremente equilibrado entre o fracasso e a ambição do sucesso, chego à meia idade meio em desconforto entre a metade de mim já trabalhada e a outra moderadamente sonhando com uma aposentadoria por tempo integralmente dedicado a tarefas medíocres.
Num mundo hoje regido pela busca do sucesso a qualquer preço, da fama a qualquer custo, da celebridade a qualquer virtude ou vilania, o medíocre é o primeiro a se depreciar, já que se sofre como se fosse e não fosse, além de estar apenas um degrau acima do anonimato. Quem se contentaria em ser anônimo na sociedade do espetáculo? Quem se reconciliaria com a própria mediocridade num mundo feito de passarelas, palcos, vitrines e pódios onde todos aspiram a subir não importando como? Quem acaso louvaria a moderação num mundo de excessos?
Pois acreditem que não me descontenta a sombra obscura que me acolhe e protege do sol. Prezo a sombra da árvore mirrada que plantei entre os refletores e a escuridão aterrorizante do anonimato. Daqui, sem fazer maior esforço, contemplo o grande e vazio espetáculo do mundo embalado pelo balanço da rede que entedia os enérgicos e ambiciosos, castiga os astros desprovidos de luz própria ou alheia, deixa sonolentos os preguiçosos sem ideal e músculo.
Daqui aprecio, não raro aos risos, a corrida insensata que tantos correm sem saber por que ou para onde. Correm porque, se por um instante pararem, mergulharão no vazio e na depressão. Correm simplesmente porque têm pernas e nunca lhes ocorre perguntar para que servem. Embriagam-se com a ação pura, pois temem a atividade iluminadora do pensamento que corre prescindindo de pernas, atravessa mares e horizontes a galope da imaginação criativa. É por isso que tudo faço, mediocremente ou não, sem sair da rede. Por isso amo minha rede nordestina ou grega ou russa como Oblomov amava viciosamente seu sofá. E se todas as corridas de São Silvestre não valerem meu obscuro reino, suspenso entre duas paredes?
Se a virtude de fato consiste no meio termo, como postulava Aristóteles, será então justo concluir que sou um medíocre extraordinariamente virtuoso. Mas convenhamos que o grande feito seria tornar-me meio vivo e meio morto, isto é, nem ir nem ficar, nem entrar na cova, nosso irrecorrível endereço último, nem ficar para sempre penando neste mundo cujas soluções são sempre extremas.

Recife, agosto de 1993 (revisto e ampliado em janeiro 2013).

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