quinta-feira, 25 de julho de 2013

Estrela da minha vida


A estrela da minha vida
Nua brilhava no céu.
Na solidão recolhida
Vertia luz no seu véu.

A estrela da minha vida
Nas noites de lua cheia
Ninava a canção perdida
Nos grãos da dor e da areia.

Farol guiando meu barco
Luz no meu turvo destino
Geometria dos arcos
Vertigem no céu alpino.

A estrela da minha vida
A noite um dia apagou
E o barco cego, à deriva
No alto mar afundou.

Recife, 12 de novembro de 2012.


domingo, 21 de julho de 2013

Soneto rancoroso


Um soneto de amor, mais um soneto
por que mais uma vez ainda escrevê-lo
se teu corpo balança preso ao espeto
e o sangue mancha a carne e o teu cabelo?

Um soneto que verte o meu rancor
depois que o amor passou e me traiu
retém no meu silêncio a muda dor
de quem só por vingança te baniu

de toda sensação e pensamento
que acaso possa em mim por ti viver.
Desejo que distante, em teu tormento

padeças mais que eu, mais que o ateu
que nega Deus, a vida até morrer
queimando no inferno o nome teu.

Recife, maio de 2013.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Beleza


Há algo mais banal do que a beleza
que em tudo e cada coisa nos espreita?
Reinando sobre toda a natureza
se entrega a todo abraço que a estreita.

Em tudo que povoa o estranho mundo
imprime seu sinal com tal firmeza
que impele meu mergulho até o mais fundo
das águas refluentes de beleza.

Se tudo ela recobre, em tudo está
fundindo em cada ser sua estranheza
por que tanto ainda logra espantar

o senso dócil servo da baixeza?
A luz de quem a vê é o olhar
que vê por ser parente da beleza.
Recife, junho 2013.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Preconceito do Preconceito


Já houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior? Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito – de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava que suas filhas se apaixonassem por negros.
O nordestino é o judeu brasileiro na história dos nossos preconceitos. Sei que a analogia é um tanto forçada, mas quase todas o são. Não faltam explicações históricas e sociológicas, também psicológicas, para a frequência desse tipo de preconceito. A educação e o esclarecimento, que supõem a assimilação do saber necessário à compreensão racional desse tipo de preconceito, sem dúvida muito importam para que modifiquemos nossas disposições preconceituosas. Como acima observei, a consciência é o primeiro passo necessário para a correção dessas distorções que intervêm na nossa apreensão racional da realidade. O problema é que preconceitos e estereótipos alimentam-se de paixões correntemente manipuladas por grupos sociais interessados em assegurar na sociedade posições de poder econômico e político. Mais grave ainda é considerar que são sintomas da agressividade constitutiva da nossa natureza.
Se a educação e o esclarecimento fossem suficientes para abolir o preconceito, como explicar que ele exista em toda sociedade conhecida, não importando o grau de difusão dos processos educativos nela observável? O exemplo histórico mais conhecido, também o mais terrível, é fornecido pelo advento do nazismo na Alemanha. Sabemos que oficiais de alta cultura, educados na tradição do mais alto humanismo germânico, oprimiam judeus nos campos de concentração enquanto à noite se comoviam em casa ouvindo Bach e Mozart, lendo Goethe e mirando-se como modelo de uma supremacia racial e civilizacional destinada a imperar sobre o mundo. Sei que o termo que acabo de empregar, “oprimiam”, soa como um eufemismo, como uma expressão amena para sugerir os horrores produzidos nos campos de concentração. O fato sugere a complexidade espantosa do ser humano capaz de habitar essas duas ordens de realidade em princípio antagônicas. O mesmo valeria para as sociedades escravocratas. O Nordeste brasileiro constituiu um dos mais completos exemplos dessa história. Bem poucos se davam conta do antagonismo entre a escravização do negro e a instituição da religião católica, que prega a igualdade universal dos seres humanos.
Se no Brasil a polaridade corrente, em termos de preconceito regional, compreende o Sul, notadamente São Paulo, e o Nordeste, nos EUA a relação se inverte, pois lá o Sul é objeto de preconceito dos nortistas. Convém frisar que me refiro a inversão em termos de poder. A raiz histórica dessa polaridade procede do fato de que nos EUA a escravidão e a economia de base agrária concentraram-se no Sul, enquanto a economia industrial e moderna desenvolveu-se sobretudo no Norte do país.
Como o nordestino é vítima corrente do preconceito sulista, antes de tudo paulista, é compreensível que reaja enquanto vítima denunciando a violência do mais forte. Se no entanto queremos ir mais fundo na consideração do preconceito, precisaremos reconhecer que, numa outra perspectiva, o nordestino sai da posição de vítima para se converter em agente do preconceito ou agressor. O preconceito de gênero, por exemplo, é provavelmente mais forte no Nordeste, onde o patriarcalismo fincou raízes muito mais profundas e duradouras. Esse tipo de preconceito, como sabemos, visa a mulher, vítima sobretudo de violência doméstica e da misoginia comum nos círculos machistas. Sabemos ainda que esse tipo de preconceito, estendido na forma de preconceito sexual no sentido amplo, envolve também homofobia, ou a intolerância investida contra o homossexual. Outra forma corrente de preconceito, ainda na ordem das diferenças regionais ou espaciais, remete à discriminação imposta pelo elemento citadino ou urbano ao rural. O termo matuto, muito corrente no Nordeste, está impregnado de discriminação. O matuto simboliza o oposto de todos os valores culturais positivos atribuídos ao habitante da cidade grande.
Como todo país de largo passado colonial, de resto ainda bem vivo no presente, o Brasil sofre de uma angústia de reconhecimento e identidade diante do estrangeiro, sobretudo o estrangeiro norte-americano e europeu. É fato que nossa imagem nesses países não passa de estereótipo grosseiro. Há até quem pense, refiro-me a gente que estuda nas melhores universidades do mundo, que o espanhol é a língua oficial do Brasil, que somos um país africano, que temos apenas futebol, carnaval e mulher submissa e gostosa e desfrutável. Seria injusto atribuir a persistência de preconceitos tão ofensivos e infundados apenas ao etnocentrismo estúpido dos países cultural e economicamente dominantes. Nós próprios, sejamos honestos, concorremos para a difusão e persistência desses preconceitos quando, em nome da afirmação de uma discutível identidade cultural, projetamos de nós próprios uma imagem exótica baseada em tradições e elementos diferenciais pré-modernos. Um único exemplo: a publicidade oficial brasileira já espalhou pelo mundo fotos de mulheres mulatas, rabudas e desfrutáveis como atrativo turístico.
Teresa Sales discordou de mim ao ler acima o adjetivo “rabudas”. Entre outros argumentos ponderáveis, salientou o fato de que destoava do meu estilo. Dei-lhe pronta razão, que aqui explicito, embora omita os detalhes do que discutimos receoso de alongar desnecessariamente o ensaio. Importa no entanto frisar que, embora concordando com ela, insisto em manter o adjetivo. Usei-o de forma deliberada, acrescentaria expressivamente necessária, pois o adjetivo traduz o sentido preciso do cartaz da publicidade oficial mencionada no parágrafo acima. Sendo mais exato, vi-o no próprio consulado do Brasil em Londres, por volta de 1990. Difundido internacionalmente pela extinta Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), enquadrava num close that speaks volumes (abuso agora do eufemismo) o traseiro de uma mulata. O sentido da foto, ou propaganda, está de tal modo impregnado no imaginário erótico brasileiro e estrangeiro que me dispenso de esmiuçá-lo, já que é de fato um estereótipo cultural vivíssimo da sexualidade brasileira, ou da docilidade desfrutável da mulher brasileira.
Como conversa puxa conversa, e memória puxa memória, minha discussão com Teresa me fez lembrar um outro fato que reforça a linha do argumento desfiada nos parágrafos precedentes. Na década de 1990, quando cresceu a afluência de turistas europeus para o Nordeste, um dos principais periódicos nordestinos (o Diário de Pernambuco ou o Jornal do Commercio) estampou na primeira página da sua edição de domingo: “A Europa se curva ao Nordeste”. Sabe o leitor atento que a manchete é uma variação do nosso orgulho ressentido de país colonizado quando algum triunfo ou virtude brasileira imposta ao europeu vinga nosso passado. O mais significativo, no entanto, é que o texto da reportagem tratava explícita e prioritariamente de turismo sexual. Um dos turistas entrevistados (italiano ou alemão) louvava (era o tom da reportagem, não minha memória nem o estilo com que a reproduzo) a sensualidade submissa e quente da mulher pernambucana.
A última campanha presidencial deu margem a conflitos que expressam antes de tudo interesses momentâneos dos grupos em luta pelo poder. Apesar de todo o barulho eleitoreiro e marqueteiro dos militantes e profissionais da política, há bem pouca diferença ideológica entre o PT e o PSDB, entre Dilma Roussef e José Serra. Em meio a tanta disputa contaminada e antes de tudo dirigida por interesses políticos e econômicos, o caldo transbordou sobre o solo de antigas e enraizadas disputas regionais saturadas de preconceito. É nesse contexto que a polêmica entre São Paulo e o Nordeste, tendo o preconceito como cerne da disputa, é periodicamente retomada. Há quem assim esqueça de que a própria propaganda política alimentou nossos preconceitos correntes. Os dois candidatos concorrentes à presidência, inspirados pelo pragmatismo desonesto, diluíram o debate em torno da questão do aborto, outra deplorável evidência dos nossos preconceitos inconscientes e não raro hipócritas.
Sou absolutamente favorável à luta contra o preconceito, contra todo tipo de preconceito, que deve ser denunciado e desmascarado. A educação e a opinião esclarecida são parte crucial dessas formas de participação e luta nos conflitos sociais. Sendo ainda mais preciso, argumento baseado na perspectiva do racionalismo universalista. Sei que essa perspectiva está em baixa, obstruída e combatida por toda forma de particularismo nacional, regional, religioso, racial, de gênero etc. Sei ainda que é ilusório acreditar na instituição de uma ordem humana universal isenta de preconceito e dominação. Não obstante, continuo fiel a meu racionalismo universalista. Por quê? Ora, porque estou convencido de que conceitos como os de humanidade, nação, identidade etc, são antes de tudo construções míticas ou pelo menos abstrações inevitáveis, isto é, não têm existência empírica ou factual. O que é o brasileiro, por exemplo? Qual a sua identidade? O brasileiro que mentalizamos ou conceituamos é produto de projeções imaginárias, o que não quer dizer que seja puramente fictício. Já que estamos no terreno das ilusões necessárias, dado que não podemos viver sem elas, fico com a ilusão do racionalismo universalista.
Mito por mito, como já escrevi num outro contexto argumentativo, prefiro o do universalismo. Ele se baseia na unidade biopsíquica do ser humano, não na pluralidade inegável das culturas. Cada uma tem seus modos próprios de expressão e linguagem, de relação com os universos da natureza e da cultura. Uma coisa é reconhecer essa pluralidade efetiva, outra, bem distinta, é propor uma teoria relativista segundo a qual cada cultura é única e portanto intraduzível em qualquer outro código. Reconheço a singularidade de cada cultura, mas isso não me impede de conferir prioridade àquilo que identifica em escala universal a espécie humana. Somente dentro desse quadro argumentativo podemos coerente e efetivamente defender valores humanos transcendentes a cada cultura. Se o critério é este, o de cada cultura particular, como argumenta o relativista, então ficamos de mãos atadas para defender qualquer valor prescrito, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos.
O mito universalista tende a produzir políticas e formas de relação entre culturas baseadas na tolerância e no respeito a valores universais que nos facultam tomar posição efetiva contra valores particularistas que em termos práticos agridem os direitos do indivíduo. A questão momentosa envolvendo a iraniana Sakineh, à qual dediquei um artigo intitulado Universalismo versus Relativismo, ilustra muito bem essa questão. O mito universalista, se não quer se confundir com o humanismo ingênuo, compreende a natureza agressiva do ser humano, raiz psicológica do preconceito.
Reiterando uma frase que se tornou lugar comum, o mundo em que vivemos é uma aldeia global. A universalização dos meios de comunicação de massa, assim como dos processos de produção econômica e circulação da mercadoria, dissolveu as fronteiras tradicionais entre culturas e nações. Este fato impõe cada vez mais a necessidade do intercâmbio entre culturas, a necessidade de formas de consciência distintas daquelas forjadas pela ideologia nacionalista, assim como por qualquer outra ideologia particularista. Sei que os processos universalizantes acima indicados de modo algum suprimem relações de dominação e poder entre as nações. O que me parece evidente é que precisamos propor novas formas de relação e consciência opostas à opressão que nunca se baseou puramente em relações de dominação colonial ou imperialista, como os nacionalistas supõem e não raro usam esse argumento para justificar ou mascarar relações internas de dominação.
Quanto ao preconceito, ele continuará vivo. Seria ilusório acreditar que o simples aperfeiçoamento dos meios de educação e esclarecimento são suficientes para suprimi-lo. Como acima ressaltei, nem isso é suficiente para suprimi-lo nem é suficiente a perspectiva racional e universalista. O preconceito alimenta-se antes de tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos. O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista, também à difusão do saber sócio-antropológico na sociedade contemporânea.
Por mais que avancem, e felizmente têm avançado, as políticas de tolerância e respeito pela diferença são insuficientes para suprimir o preconceito. Portanto, precisamos realisticamente aceitar que ele é parte da nossa natureza agressiva, que precisa de justificação ideológica para impor a dominação violenta contra o outro. É dessa energia psíquica do ser humano que os grupos políticos se valem para promover conflitos sociais que por sua vez revertem em benefício dos que mandam, dos que exercem o poder na sociedade.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

... das pequenas coisas


Sempre quando se mudava. Absolutamente imprevisível nos seus modos de manifestação, a felicidade irrompia do cerne das pequenas coisas. O processo, de tão familiar, tornou-se previsível, imprevisível era a irradiação da felicidade. Já exausto e suado, depois de horas embalando livros, cds, dvds, tapes, minúsculos objetos paralisados no fundo de gavetas empoeiradas, súbito ela irrompia. Vinha de longe, submersa no mofo dos papéis guardados, no ranger secreto das pequenas coisas. Por exemplo assim: ele esvazia uma gaveta, já impaciente, quando o envelope cheio de fotografias escorrega de suas mãos. O choque da felicidade desata-se do íntimo de tais pequenas coisas: as imagens impressas sobre o papel, o sopro do passado vindo de longe, paralisando miraculosamente o fluxo do tempo durante alguns vagos minutos. Retendo as fotos entre os dedos, contempla maravilhado os movimentos da vida dissipada e perdida irradiando de mudas imagens: o carnaval de Olinda pulsando no fundo da cena em contraste com o sorriso sereno enquadrado no primeiro plano. Noutra foto, banhada pela primeira luz do dia, ela repousa quieta e reclusa sobre o chão da varanda. Pouco antes, fato ausente da foto, saíra da cama onde o suor, esperma, odores do amor consumado, respiravam ainda nas dobras dos lençóis revoltos.

A repetição desses milagres cotidianos, ou recriações epifânicas do tempo vivido e materialmente irreversível, se fez sempre inapartável dos processos de mudança. Por isso, na ânsia de reter e renovar tais milagres, tornou-se andarilho compulsivo. Odiava mudanças, sabia-se um sedentário insanável, mas rendeu-se dócil à tirania das peregrinações por bairros e condomínios da cidade. Era o único meio de repor no presente sombrio as iluminações definitivas enraizadas no amor ido e perdido. Os amigos, a tudo alheios, faziam piadas das quais ele próprio complacentemente ria. Diziam que era um judeu errante, que não pagava aluguel, que os vizinhos o desprezavam sempre tramando um jeito de o expelir do grupo ou comunidade.

Sua vida concentrou-se nesses dois modos exaustivos de ritual: fazer e desfazer malas, ordenar e desordenar ambientes domésticos. Num ou noutro, quando não em ambos, nos casos de mudança pontuados pela sorte, ela se desatava dos fundos de gaveta, das cartas atadas num longo cordão prateado, dos poemas que lhe escrevera, dos odores que a brisa noturna soprava pelos vãos da casa. Por exemplo assim: na madrugada, dentro do apartamento vazio, ele a fotografa no momento em que ela corria em sua direção. Noutro plano, este à luz do dia, posa de espadachim entre as filhas eufóricas. Eles entre festas, eles entre frestas, eles entre gente, mas sobretudo eles entre eles concentrados no exercício de um amor sempre renovado e intenso, cavando no fundo dos poços e recessos mais insondáveis as misteriosas emanações do amor constelado.

Aprendeu com as mudanças o contentamento da felicidade alojada nas pequenas coisas. Aprendeu que a felicidade não reside nos grandes e momentosos gestos, nos feitos extraordinários, nas vidas tecidas por acontecimentos inusitados. A felicidade, essa prenda rara avessa aos estados de permanência, infiel aos caprichos da duração incontentada, a felicidade é rebento sutil das pequenas coisas, das aventuras ordinárias da vida povoada por seres tão comuns quanto ele. Se é fruto da vida vivida, sobretudo do modo como a vivemos, nasce ela antes de tudo das tramas indecifráveis da memória. Pois é nesta que a felicidade se reconcilia com a duração, ideal inalcançável na ordem da felicidade vivida, ideal fadado à frustração nas insensatas fantasias dos amantes. A felicidade, sabe ele agora dobrado ao peso das malas que carrega no trânsito das mudanças, é a permanência dos bens idos e perdidos nos campos iluminados da memória. Mas isso, diz ele de si para si próprio, não é lição para sedentários. Há que fazer muitas mudanças de vida e endereço.

Dizem que ele segue por aí, judeu errante transportando nas malas suadas as pequenas coisas de sua secreta felicidade: livros, fotos, cds, dvds, objetos esquecidos nos fundos de gaveta aos quais ninguém dá importância. O problema da felicidade, ou das pessoas que mais a desejam, está na busca ilusória das ações grandiosas, na perseguição insensata dos fins inatingíveis. O problema da felicidade é um problema que se decifra no convívio das pequenas coisas. Mas chega, diz o motorista da transportadora estacionando o carro para recolher sua mais nova mudança.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Meditação sobre a noite


Não mais a manhã recoberta de luz
A ilusão do futuro
Anunciando um mundo de infinitas possibilidades.
Não mais o amor que a tudo imprimia sentido
Transfigurando o deserto da vida
Presente oprimida pelo medo
A incerteza de tudo
O medo de tudo jogar quando
Se sabe que o risco é tudo perder.

Não mais a vida coletiva
Lastreada em ideais de justiça e igualdade
Tua utopia que não veio, nunca virá.
Não mais o dia desdobrado na sua perturbadora
Extensão que é antes inconsciência
Da fluidez em que te dissipas.
Somente agora, tardiamente
Te dás conta do que tão pouco
Conta ou simplesmente nada conta.
Quanto abuso e desperdício
De ti e do outro por razões
Que nem existiam ou eram pura maquinação
Enganosa de sentido onde nenhum sentido havia.

Não mais o desejo confuso à caça
Do que passava e logo te fugia
Dispersando-se nas ruas sem mapa
Enquanto no ar retinhas um travo
De engano, um vinco de perda sem reparação.
Não mais o desejo incontentado
Ou ainda o que fruías à custa da dor
De sabê-lo vazio de tudo que não fosse
A insensata imaginação que tudo quer
Por não saber o que quer.

Não mais a busca desnorteada
Da felicidade inacessível.
Não mais a consolação do amor
Que foi e sobrevive como memória
Fidelidade a tudo que importa viver e salvar
Para além da perda inerente a todo bem humano.
Como aspirar a outro ideal de amor
A outra ordem de felicidade
Se a tua matéria, a frágil matéria humana
É a madeira torta que quer e sonha a perfeição
Factível apenas na irrealidade do sonho?

Não mais nada além
Da tua humana e humilde medida
Pois que o dia, o longo dia
Cumpriu sua jornada e tudo agora é a noite
A imensa e solitária noite
Impregnada do fim previsível.
Acolhe-o, esse obscuro e temível fim,
Como acolheste a vida que te coube
Viver contigo e contra ti.
Tudo que afinal te resta é a noite
Com seu mistério e promessa
De reconciliação na ordem insondável da natureza.
Dorme e sonha ou simplesmente
Sonha acordado, já que talvez tudo e tua própria vida
Sejam apenas sonho.

Recife, 2 de julho de 2013.











segunda-feira, 1 de julho de 2013

Água viva


As águas do rio passam
Os fatos da vida passam
Passo eu com eles também.
Mas o rio vive além
Das águas de que é feito
Enquanto eu também passo
Pois me dissolvo nos fatos
Que são meu fado imperfeito.

As águas do rio mudam
Enquanto ele é eterno.
Os fatos e eu mudamos
E assim por fim naufragamos
No rio que é nosso inferno.

Recife, 30 de junho de 2013.