segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mioca e Nino


Iam a caminho da praia, já noite fechada, quando ouviram um sopro débil vindo do beco escuro. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco. Ouviram outro sopro, este bem nítido: miau... Apuraram a vista e logo divisaram, no canto da parede, a gatinha encolhida e assustada. Depois de alguma hesitação, Marilena, tocada pela visão da gata encolhida e abandonada no beco, estendeu as mãos trazendo-a para perto de si.
“Minhoca. Agora você se chama Minhoca”. Batizou-a assim sem refletir.
Logo Cláudio, que a tudo assistia silenciosamente, corrigiu-a: “Não é Minhoca. Ela tem cara de Mioca. Não acha?”. Marilena assentiu e logo trocaram a caminhada na praia pelo socorro a Mioca. Voltaram para casa sentindo os pelos úmidos e sujos da gatinha cujos olhos assustados seguiam fixos e tensos os movimentos dos pais adotivos. Sim, sem que nada discutissem ou acordassem, desde já Marilena e Cláudio sabiam que iriam doravante cuidar de Mioca.
Mal chegaram em casa, cuidaram de lavá-la. Mioca trazia nos pelos e em todo o corpo as marcas sujas das ruas, dos buracos onde por certo se refugiou de longos dias de abandono. Marilena sentira o tremor do seu corpo magro, o arrepio dos pelos ao contato com seu próprio corpo. Imaginaram, ela e Cláudio, que sobrevivera a muitas privações. Depois do longo e cuidadoso banho, enxugaram-na com carinho e por fim lhe serviram leite e carne moída. Apesar da fome, Mioca começou comendo ainda desconfiada, olhos fixos em Marilena e Cláudio. Depois de se afastarem discretamente, temendo ainda assustá-la, deixaram-na comendo na cozinha e foram cuidar das medidas práticas para alojá-la na casa. No fundo do armário embutido, que era quentinho e recolhido dentro do quarto que compartilhavam, arrumaram o cantinho onde Mioca passaria a viver. E assim Mioca ganhou um lar e pais.
Na manhã seguinte, tão logo acordou, Marilena acercou-se do quartinho de Mioca, já de olhos abertos, sempre fixados nela com um misto de desconfiança e temor. Depois de tomá-la nos braços para levá-la à cozinha, notou-lhe o corpinho quente, como se estivesse febril. No decorrer do dia, apesar dos cuidados que lhe dispensaram, Marilena e Cláudio notaram que a temperatura do corpo indicava o estado febril que desde cedo lhes inspirara desconfiança. Resolveram então ligar para Rosa, a veterinária do bairro que uma amiga, protetora de gatos e animais de estimação, lhes indicara.
“Ela está realmente muito febril”, observou Rosa visivelmente preocupada. Depois de examiná-la demoradamente, enquanto Marilena e Cláudio aguardavam inquietos, Rosa decidiu que o mais seguro seria ficar com ela durante o dia na clínica para proceder a um diagnóstico mais preciso. Quando voltaram à tarde, Rosa lhes disse que o estado febril de Mioca era indício de uma enfermidade mais grave do que de início supusera. Em suma, não haveria como curá-la sem submetê-la a uma cirurgia.
Mioca foi operada no dia seguinte. Voltou para casa nos braços de Marilena com o corpinho magro protegido por uma roupa cirúrgica. Marilena e Cláudio acomodaram-na no seu cantinho e desde então passaram a cuidar dela com amor inquieto e sempre vigilante. O pior é que continuava doente e a cirurgia não cicatrizava. Todos os dias precisavam remover com paciência e zelo a roupa cirúrgica para renovar a aplicação de medicamentos e ataduras. Mioca miava temerosa e encolhia-se desconfiada, o que dificultava os curativos obrigatórios feitos por Marilena com a ajuda de Cláudio.
O tempo passou e nada de Mioca ficar curada. Diante disso, Marilena e Cláudio precisaram recorrer a outros veterinários indicados por Rosa, que se confessou incapaz de prover a cura necessária. Por isso numa certa manhã Marilena e Cláudio acomodaram Mioca numa cestinha confortável e bem aquecida e levaram-na de carro para ser examinada por Carmen, professora-veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Notando a expectativa apreensiva com que aguardavam a conclusão do exame, Carmen disse sorridente para Marilena e Cláudio:
“Pois é, amor dá trabalho. Qualquer amor, inclusive de bicho”.
“É o que vivo dizendo a Marilena, que aliás me dá muito mais trabalho do que Mioca”, respondeu Cláudio com laivos estudados de rabugice que sempre provocavam risos em Marilena e nos amigos já afeitos a seu humor travosamente divertido.
Ao fim dos exames, apesar do clima descontraído desatado pela conversa errática e carregada de simpatia recíproca, Carmen não lhes deu solução nem sossego. Seria preciso submeter Mioca a mais uma cirurgia. Depois desta vieram outras, assim como novas idas e vindas à Rural. Em casa, Mioca continuava submetida aos curativos diários. Apesar do cuidado amoroso com que lhe ministravam medicamentos e medidas de assepsia preventivas de agravamento da infecção, Mioca sempre se contraía temerosa.
Não obstante a constância e o amor de Marilena e Cláudio, bastante para desatar-lhe o olhar antes fixo e assustado, Mioca parecia viver assombrada por temores insondáveis. Se acaso recebiam uma visita, ela se entocava no seu cantinho. Como viviam rotineiramente reservados, as visitas eram raras. A mais freqüente era a de Gastão Fortuna, cuja notória avareza inspirava recorrentes piadas à língua cortante de Cláudio. Marilena ria com ambos. À medida que a amizade entre ela e Gastão se estreitava, apesar de ela aprender a defender-se da avareza dele escondendo algumas garrafas de vinho para forçá-lo à contrariedade de trazer alguma, Marilena foi gradualmente substituindo a reserva inicial pelo tom brincalhão e zombeteiro de Cláudio. Assim, a presença ocasional de Gastão somou-se ao ambiente da casa. Até Mioca, que sempre corria para a sua toca tão logo via Gastão entrando, até ela foi se resignando ao convívio com Gastão como se dissesse: entre tantas desgraças, que mal me pode fazer mais uma que de resto não me fere o corpo? Numa noite extraordinária, com a sala cheia de convidados alegremente bebendo e tagarelando, Mioca entrou na sala, para espanto risonho dos pais, e saltou sobre o corpo de Gastão. Como o feito inusitado não lhe custou nenhum dinheiro, Gastão riu com gosto enquanto alisava os pelos do corpinho magro e castigado de Mioca. Foi uma cena memorável na crônica daquela família minúscula cujo centro expectante era a possibilidade da cura de Mioca.
Econômico até no gasto dos afetos, Gastão Fortuna contava meticuloso os investimentos que fazia no convívio dos amigos. Talvez por isso fosse observador atilado dos comportamentos. Assim, passou a perceber o quanto a presença de Mioca curiosamente humanizara Cláudio. Pois este nunca fora de gastar muito afeto, nunca dele repontavam os desmandos carentes e efusivos do brasileiro movido pela indisciplina e o excesso. Suas motivações, distintas das de Gastão, emanavam de fontes improváveis, talvez de certa disposição cética que não raro deslizava para modos de cinismo pouco condizentes com as naturezas mais amorosas. Esse grão de amor e desvelo entrou-lhe na casa depois que passou a viver com Marilena. À percepção de Gastão, todavia, o vinco de ternura, de vulnerabilidade afetiva, isso proveio de Mioca arrastando pelos cantos da casa o seu martírio miado, sua dor renovada a cada cirurgia, a cada curativo, a cada infecção renitente e renovada. O certo é que passou a sofrer no cotidiano, Marilena ainda mais, a doença incurável de Mioca. Embora tanto dela cuidassem, tanto fizessem para curá-la, os fracassos das cirurgias sucessivas findou por abatê-los em certos momentos. Uma noite, enquanto bebiam vinho conversando sobre a sorte infeliz de Mioca, Cláudio acabou desabafando:
“Se Mioca não ficar curada, ou infelizmente um dia morrer dessa doença, não mais cederei à tentação de trazer outro gato para a nossa casa”.
Marilena assentiu, embora no fundo sentisse que aquela onda quieta e secreta de amor materno circulante no seu ser não seria abafada pelos desastres provenientes do seu amor por Mioca. Resignaram-se a sofrer por Mioca, a continuar lutando para curá-la, mas ficou ajustado que depois dela nenhum outro gato entraria no seu mundo privado.
9h da noite. O interfone toca. Cláudio e Marilena olham-se intrigados. “Quem será, Leninha?”
A voz do porteiro: “Professor, seu Gastão e uma amiga dele perguntam se podem subir”.
“Agora essa, Leninha. Basta a gente se esquecer de passar a chave na porta e logo Gastão vem se enfiando casa adentro. Filho da puta!”
Cláudio lembrou-se a tempo de pedir a Marilena para esconder as garrafas de Bordeaux e os dois litros de Jack Daniel`s comprados naquela manhã no Carrefour. Tinham feito a feira etílica precisamente naquele dia. Quando Marilena levantou-se para remover as garrafas da mesa, Gastão e a amiga entraram.
“Ora viva! Temos bebida fina na mesa. Isso quer dizer que chegamos na hora exata”. Abraçou Cláudio, que remoia o desejo de estrangular o sovina impertinente, e disse para Marilena: “Marilena, esta é Miss Haig, minha amiga de aventuras literárias e sobretudo de copo”.
Marilena trocou dois beijos convencionais com Miss Haig e foi logo perguntando:
“Seu nome é mesmo Miss Haig?”
“Não. Na verdade me chamo Maísa. Fui rebatizada por um amigo de Gastão cujas garrafas de Haig bebi com tanta avidez que ele, por vingança ou troça, passou a me chamar assim. Eu e Gastão gostamos tanto da brincadeira que prontamente adotamos minha nova identidade. Como acho que a nossa identidade é uma ficção ou mera convenção social, troquei de nome tão à vontade que passei a me reconhecer como Miss Haig. Portanto, querida, fique à vontade para me chamar Miss Haig. Aliás, já que temos Jack Daniel`s na mesa, não faço nenhuma discriminação. Sou pluralista em matéria de uísque.”.
Depois do primeiro gole, Gastão desviou o rumo da conversa para justificar a inconveniência da visita: “Cláudio, você sabe que sou um humanista, talvez o último. Preocupa-me ver você e Marilena fechados nessa devoção anti-humanista à doença de Mioca. Quero resgatar vocês para o convívio humano, para os inefáveis prazeres do convívio humano”.
Mais uma vez Cláudio ficou com os inefáveis de Gastão atravessados na garganta. Se havia um adjetivo que Gastão usava com reiteração perdulária, era por certo inefável. Na voz de Gastão, os poetas pernambucanos eram inefáveis, fossem quem fossem. O que parecia importar para seu gosto poético era o timbre do registro de nascimento. Se era poeta pernambucano, era com certeza autor de poemas inefáveis. Inefável era também o futebol de Gérson e, no presente, de Toni Kroos, o cérebro da seleção alemã. Inefável era a música de Roberto Carlos. Inefáveis eram os vinhos franceses, que por alguma razão insondável bebia sempre nas adegas alheias.
Depois de muita bebedeira e tagarelice, Mioca entrou na sala cosendo o corpinho frágil pelos cantos da parede. Para surpresa de Marilena e Cláudio, voltou a saltar sobre a barriga de Gastão cujo humanismo estava bêbado demais para afagar-lhe os pelos. Mioca recolheu sua ousadia, escorregou do sofá para o chão e se foi de volta para o seu refúgio novamente cosendo o corpo aos cantos da parede. Cláudio observou a cena acabrunhado e por fim cuspiu entredentes: “Monstro sovina!”
Gastão e Miss Haig saíram tarde da noite, ambos visivelmente embriagados. Cláudio e Marilena, exaustos e também bêbados, foram dormir desejando que a blitz da tolerância zero no trânsito obrigasse o casal de salteadores a engolir o bafômetro.
No dia seguinte, ainda remoendo as agruras da véspera e a ressaca, tiveram que pegar a estrada, pois Mioca precisava submeter-se a uma nova cirurgia na Rural. O trânsito estava mais infernal do que o previsível. Assim, a viagem foi longa e lentíssima, exigindo de ambos uma paciência excepcional. Na verdade, Cláudio logo esgotou a que lhe restava e danou-se a maldizer a imobilidade progressiva do trânsito recifense. Não fosse o amor que devotavam a Mioca, jamais atravessariam quilômetros esburacados e intransitáveis para alcançar um destino tão distante. Mas Mioca precisava daquele sacrifício e o amor custa caro, lembrou Cláudio rosnando contra o ruído das buzinas impacientes.
Voltaram já no início da noite. Mioca, acomodada na sua cestinha confortável, miava miúdo, por certo sentindo dores provocadas pela nova cirurgia à medida que o efeito do anestésico regredia. O desejo de Marilena e Cláudio era dar conta das necessidades imediatas, tomar um banho e depois cair na cama. Mas estavam tão exaustos, tão estressados pelos rigores do dia e da véspera que decidiram caminhar um pouco no calçadão da praia. Assim talvez relaxassem e pudessem voltar para afundar no sono restaurador de que tanto precisavam.
Iam a caminho da praia, próximos ao beco escuro de onde há meses recolheram Mioca, quando de repente ouviram um sopro nítido provindo do mesmo lugar: miau. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco escuro e logo divisaram um gato lindo de pelos negros e abundantes. Miau, miau, repetiu o gato olhando-os com a confiança dos deserdados aventureiros e saudáveis. Cláudio não se conteve:
“Nino. O nome dele é Nino, Leninha. O nome desse moleque safado é Nino”.
Marilena assentiu: “Que gato lindo, Cláudio. Vamos levá-lo para casa”.
E assim Nino entrou afinal nesta história que começa com quatro patas de gato e acaba com oito. O resto não conto. Adianto apenas que o final não foi feliz, pois Mioca continua vivendo seu martírio sempre amorosamente assistida por Marilena e Cláudio. Em compensação, Nino tem beleza e saúde para humilhar Mioca e de resto provar que no reino da natureza, assim como no dos humanos, a justiça é um acidente e assim as desgraças e fortunas estão sempre desigualmente distribuídas. Aliás, já que falei em fortuna, Cláudio e Marilena mandaram Gastão Fortuna e Miss Haig ir beber noutra bodega. Já que até o amor custa caro, preferiram sensatamente gastar o que têm e podem com a doença incurável de Mioca. Nino compensa as perdas.

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