quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Amor Memória




Não a vejo há mais de 17 anos. Dizem que envelheceu. Quem não? Somos tão inconscientes do tempo, sobretudo do que desbota nosso narcisismo, que de ordinário aludimos à passagem do tempo apenas no corpo do outro. Também eu envelheci, também sobre mim o tempo tem desenhado o vinco errático de sua passagem. Minha faxineira, uma velhinha jovial e admiravelmente conservada, logo se encrespa se a lembram de que tem já 85 anos. Na verdade, a lembrança ou a alusão mais casual a esse fato indesejável atinge-a como uma denúncia, se parte de alguém que ama, ou como uma ofensa imperdoável, se procede de quem lhe inspire desagrado ou aversão.

Mas dizia eu que envelheceu. Perdi-a de vista por muito tempo. Para ser preciso, desde que nos separamos. Voltei eu para o Brasil, ela para a Espanha. Cada um regressou a seu terreiro ou país. O amor que tão poderosamente nos ligou – e ainda nos liga, posso com certeza dizê-lo falando de mim – foi fruto de um feliz acaso. Fui a uma festinha de aniversário de uma amiga e lá nos encontramos. De repente, uma felicidade intensa e absolutamente imprevisível desceu sobre minha confortável solidão. De repente, Londres já não era Londres, a cidade habitual que a rotina e os passos previsíveis e as ações programadas converteram numa extensão da casa onde cada coisa tem seu lugar, cada cartografia suas coordenadas, cada metro sua medida. De repente, Londres transfigurou-se num mar aberto, numa paisagem ensolarada, num campo sobre o qual sua sombra imensa e amorosa se projetava e me habitava.

Durante alguns meses vivemos um amor intenso e miraculosamente harmonioso. Amores passionais são de ordinário turbulentos, ou pelo menos expostos a variações climáticas perturbadoras. Não o nosso. Sonhava há muito, sintoma talvez de minha busca deliberada de uma vida regida pela balança com os dois pratos equilibrados, um amor assim: o amor intenso e todavia harmonioso, o amor paixão medida, como escreveu Drummond ao cunhar o belo título de um livro menor que o ideal expresso no seu nome de batismo.

Os românticos amam desgovernados pelo excesso, amam como um sol sem crepúsculo, um poço sem fundo, um movimento sem pausa. Decerto vai em todas essas imagens algo de caricatura do ser romântico, mas sob as tintas da desmedida pulsa a verdade desse modo de amor. O que sei, falando de mim, é que essa desmedida, esse desgoverno da paixão me é estranho. Superados os excessos da juventude, quando no geral amamos possuídos pelo excesso romântico, passei a desejar o amor paixão medida, como acima assinalei.

Foi esse modo de amor que com ela tive a ventura de viver. Por isso nunca brigamos, nunca nos desavimos, nunca nos chocamos naquele tipo de cena tão comum no amor dos românticos: a cena da briga, idealmente logo seguida da reconciliação arrebatada. Há românticos que tanto cultuam esse ideal de convívio amoroso, feito de choques e reconciliações exaltadas, que suspeito com frequência provocarem esse tipo de situação, ainda quando da boca para fora deplorem as turbulências, não raro jurando de pés juntos que amor é compreensão e harmonia. Pois acreditem que assim foi o nosso.

Por que afirmo ainda que a amo? Afinal, mais de 17 anos passaram áridos de qualquer contato direto ou mera notícia de vida. Como explicar que amor tão pleno e harmonioso, tão invejavelmente regulado na medida da sua paixão, tenha sobrevivido sem um gesto de aceno explícito, um sopro de palavra, um testemunho de inequívoca confirmação? Para mim a explicação é simples: o amor sobrevive na memória generosa do amante. É lá, nesse lugar sem espaço e espelho, por vezes silencioso na sua pulsação inapreensível, que o amor se confirma na sua permanência. E assim sendo nada pede nem mais dá de si, pois seu modo de duração é o que sobra dos atos e vivências consumadas.

O amor memória nada dá nem pede porque ele é o fruto generoso do que foi. Sendo assim, não encerra promessa de futuro. Pelo menos, nada promete. Ele é a duração suficiente do que já se dissipou enquanto ato, enquanto expressão viva e atual de vida. Quem puder que o entenda, ou simplesmente o reconheça e aceite tal como toscamente aqui o desenho. Aliás, duvido que o entendam e de resto o aceitem na sua natureza que transtorna nossa noção convencional de tempo e realidade.

As mulheres sobretudo, a julgar por tudo que inutilmente tentei explicar-lhes, resistem à aceitação de um modo de amor que é quando já deixou de ser e não mais aspira a qualquer esperança ou simples tentação de renovar-se no outro factualmente perdido. Que fazer para persuadi-las de uma verdade que em mim vivo como verdade indisputável? Resta-me apenas resignar-me a aceitar que cada um ame como sabe, como pode e como representa o amor, essa pérola que tão pouco reconhecemos, tão pouco cultivamos e tão frequentemente dissipamos.
Salvador, 8 de fevereiro de 2011.

3 comentários:

  1. Legal, Fernando. Gostei muito do seu amor memória! Bjoca.

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  2. Fernando: Muito interessante sua crônica de memórias, além da beleza da foto. Suponho ser da própria musa inspiradora da crônica. Penso, no entanto, que as mulheres não engolem esse tipo de memória amorosa. Elas são intransigentes na noção que têm da equação insolúvel entre amor e memória.
    Luciano.

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  3. Que belos texto e memória, vão ao encontro do poeta: "Mas as coisas findas / muito mais que lindas, / essas ficarão."

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