quarta-feira, 18 de maio de 2011

Modernismo e Regionalismo




A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando avaliados de forma isenta, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros, que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre. Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram seu ímpeto modernizador e internacionalista constitui por si só uma evidência da hegemonia mencionada.

O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos. O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”. Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.

Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo, embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife cuja inspiração regionalista procurou revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.

Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta e meia são repostos em termos polêmicos.

Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos, um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do modernismo paulista.

Vejamos melhor a questão da independência ou autonomia tanto do regionalismo de Recife quanto da obra dos grandes representantes do regionalismo nordestino. Gilberto Freyre formou-se até academicamente nos Estados Unidos. Além disso, sua filiação à cultura inglesa está muito bem comprovada não só em muitos dos seus depoimentos, mas sobretudo na sua obra e na sua formação geral. Gilberto foi provavelmente o primeiro jovem brasileiro que fez estudos sistemáticos de sociologia e ciências humanas nos Estados Unidos. Quando voltou a Recife em 1923, portanto no ano posterior à eclosão do modernismo, cuja data de batismo é a Semana de Arte Moderna, era portador de ideias próprias e independentes com relação à arte moderna e à cultura brasileira. Quanto a José Lins do Rego, este formou-se sob o influxo direto de Gilberto, a quem sempre devotou a mais irrestrita admiração e amizade. O caso de Graciliano Ramos também reforça o argumento relativo à autonomia do regionalismo nordestino. O mesmo, em linhas gerais, se aplica a Jorge Amado. Portanto, é coerente a resistência que todos opõem ao modernismo, resistência que em alguns chegou ao extremo da recusa a qualquer filiação ou afinidade estética e ideológica.

Considerado o argumento exposto no parágrafo precedente, é compreensível que os nordestinos, antes de tudo Gilberto Freyre, se tenham empenhado em reivindicar a autonomia do regionalismo sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.

Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.

Ambos os movimentos, através de vias autônomas, convergiram na busca de uma melhor compreensão da origem e formação da cultura brasileira, assim como no reconhecimento da importância de valores culturais reprimidos ou depreciados pelas elites brasileiras. Livros como Macunaíma e Casa-Grande & Senzala traduzem esses valores e sentidos culturais no sentido mais alto das realizações intelectuais do Brasil. Quase tudo que o modernismo realizou depois de 1924 está associado à busca de uma cultura brasileira autêntica e renovada. O mesmo se pode afirmar com relação ao regionalismo recifense, em particular, e ao regionalismo nordestino em geral, que viveu nos anos de 1930 o ponto alto das obras de inspiração regionalista, ou pelo menos geograficamente situadas na região que, embora empobrecida em decorrência da longa e lenta decadência da oligarquia açucareira, mostrou-se dotada de grande vitalidade artística e cultural.

Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorromantismo, termo empregado por José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores particulares e subjetivos.

Referências bibliográficas:
Gilberto Freyre. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
Idem. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas. Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Valéria da Costa e Silva. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Ver também os dois artigos contidos nos links abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html

2 comentários:

  1. Meu bom! Você me traz boas revelações sobre as relações do Zé Lins com Gilberto. Você também tem ficcionistas que bebem na tua fonte. Tanto eles quanto você expressam a nossa realidade cultural. Dont worry! A literatura está cada vez mais complexa.

    ResponderExcluir
  2. O Movimento Modernista brasileiro começou por Anita Malfatti, ou seja, através das Artes Plásticas, e Monteiro Lobato escreveu sobre a exposição dela. "A Paulicéia Desvairada" em versos de Mário de Andrade e palavras publicadas de Osvald de Andrade sobre tal livro. Assim a aproximação de Mário com Brecheret foi tecendo o início daquele movimento, mas sua certidão de nascimento ocorreu por indicação de Di Cavalcanti com a Semana de Arte de 1922. Manuel Bandeira acompanhou praticamente todo esse movimento desde o princípio, entretanto não apareceu de frente como "fundador". Aqui entre nós: Joaquim Inojosa e Ascenso Ferreira foram porta-vozes dos paulistas. Gilberto Freyre fez com autonomia e provicianismo o movimento, e também liderou o "regionalismo modernista" com renomes importantes, afora os já mencionados: Joaquim Cardozo, Luís Jardim, José Américo de Almeida, Jorge de Lima e outros.
    Ficou a pergunta dos órfãos artístico-literários: Qual o nosso quinhão?!?

    ResponderExcluir