segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O contista André Resende



A literatura imaginativa consiste na recriação ou deformação, compreendido este termo no seu sentido estético, da realidade vivida ou observada pelo autor. Consideradas em relação absoluta, uma não existe sem a outra, isto é, assim como é impensável a transposição ou reprodução fotográfica da realidade para a arte imaginativa, que assim deixaria de ser arte para ser um mero documento psicossocial, é igualmente incogitável a imaginação absolutamente dissociada da realidade.

A estética naturalista representou a tentativa extrema na primeira direção. Seu insucesso foi tão patente que as piores obras produzidas em conformidade estrita com os preceitos dessa estética constituíram seus fracassos mais fragorosos. Logo, a função e a singularidade da arte não consistem em retratar ou espelhar a realidade. No outro extremo, poderíamos lembrar o surrealismo, com sua escrita automática regida pelo arbítrio do inconsciente. Transpondo o argumento para o plano das artes visuais, exemplo ainda mais extremo seria o da arte abstrata. No meu entender, os exemplos que venho de mencionar são todos malogros estéticos. Por isso fixaria minha atenção na infinidade de gradações entre o extremo do naturalismo e o da abstração, entre a ilusão especular da fotografia e o irracionalismo surrealista.

Encurto minhas divagações para entrar na consideração crítica de Uma coisa de cada vez, livro de contos de André Resende. Afinal, isentando a obra de qualquer culpa, as divagações me foram sugeridas pela sua leitura. De imediato, derivaram de minha apreensão particular do narrador, de como ele foi gradualmente se definindo à proporção que avançava na minha leitura. Seu lugar social, sua relação com o universo ficcional que desdobra à compreensão do leitor, induziram-me a refletir um pouco nos termos condensados nos dois parágrafos iniciais desta resenha. Ele me surpreende e me intriga. Surpreende, por exemplo, ao figurar ante meus olhos um universo social raramente explorado pela ficção pernambucana e nordestina que conheço. Aliás, vou desde já alertando meu leitor ocasional para o fato de que, isento das credenciais de crítico literário, ainda mais militante, ignoro a maior parte da ficção que se produz no Nordeste brasileiro e no Brasil em geral.

A ficção nordestina que conheço, aludo antes de tudo à que se tradicionalizou no corpus literário nacional, prende-se tematicamente ao Nordeste rural. Essa tradição é tão predominante que acabou fixando o estereótipo, mesmo nos círculos letrados, de uma região dilacerada pela miséria: seca, cangaço, coronelismo, misticismo e um forte veio de oralidade vincando a própria cultura letrada. Bastaria pensarmos superficialmente no estilo narrativo de escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado, Ariano Suassuna e Gilberto Freyre. Essa tradição continua bem viva no presente. Ora, diante disso, surpreendeu-me ler um contista tendente a ancorar sua imaginação ficcional no universo suburbano, espacialmente meio vago, onde se mesclam a cultura urbana com fiapos da tradição de proveniência rural. Mas o que já aqui ressalto é essa autonomia com que André Resende elabora sua ficção distanciando-se de convenções literárias e temáticas que no limite reduzem o Nordeste a um estereótipo literário.

Seguindo com minhas impressões de leitura, passei da surpresa a certo tom interrogativo quando nas entrelinhas se interpôs a figura do autor empírico, o André Resende que conheço. Longe de mim enveredar por uma leitura biográfica da obra, muito menos exigi-la. Mas esse é sempre um risco que espreita o leitor de uma obra cujo autor ele conhece, ainda quando apenas de vista e chapéu, para repisar a célebre anotação de Dom Casmurro. Não posso falar do chapéu de André, até porque ele não o usa, mas sei da sua biografia algo mais do que isso. André é um homem bem sucedido em múltiplas instâncias de atuação e realização intelectual e profissional. Não bastasse a variedade da obra intelectual que já publicou (romance, conto, teatro, literatura infantil), é também empresário e psicanalista. Indicadas essas conexões gerais com a realidade social, os valores e experiências nela supostos são muito distintos daqueles que compõem os incidentes, a experiência, o horizonte de valores dos seus personagens. Como acima sugeri, esses personagens se movem na franja da baixa classe média urbana, num limbo entre o rural e o urbano. Aliás, dadas as características dominantes na nossa formação sociocultural, esses personagens são facilmente localizáveis em qualquer capital brasileira. De Recife a São Paulo, é fácil encontrar esses mundos divergentes retidos em tempos sociais que vão da cultura oral mais primitiva à sofisticação do intelectual engrenado no capitalismo globalizado.

As considerações acima não indicam em si nenhuma restrição estética à obra, muito menos a presunção de que deva obedecer a normas de criação baseadas na correspondência entre a biografia do autor e a temática da obra. Se aqui as ressalto é porque sempre me intrigou o fato de produzirmos uma literatura tão ralamente voltada para o tipo de experiência social de que são portadoras pessoas com o perfil de André. Quero noutras palavras dizer que vivemos hoje em cidades do tipo do Recife, assim como em qualquer outra grande cidade, problemas existenciais, éticos e humanos, em suma, típicos de qualquer cidade moldada pelo capitalismo globalizado. Este supõe formas de vivência amorosa, familiar, profissional, ética e psíquica etc, inteiramente dissociadas do Brasil da tradição, do Brasil dos subúrbios, da galeria humana que atravessa a maior parte dos contos de André: o artista de circo, o equilibrista, o feirante, o açougueiro, o glutão, o comerciário, o pequeno vendedor, o pobre de profissão indefinida, o desempregado, a vizinha fofoqueira...

O fato acima, volto a reiterar, nada nos diz da qualidade da obra, mas muito sugere acerca da complexidade dos processos de criação estética, acerca da relação tão intrigante que é a experiência ou a biografia do autor e a obra que produz. Não cabe ao crítico avaliar esta tomando aquela como medida, até porque isso não passaria de psicologismo barato, mas não o desautoriza a especular sobre a questão, pois a especulação pertinente pode iluminar de algum modo a obra, ou pelo menos a opacidade do processo criador. Se a biografia do autor nada tem a ver com o universo social contido na obra, então isso importa para que o crítico melhor dimensione a riqueza imaginativa da obra, do enredo, das personagens que vivem as histórias narradas.

À parte qualquer especulação de fundo biográfico, é evidente que contos como “O equilibrista” , “Homem balão” e “Ulisses, Ulisses” são obras de imaginação mais livre. O último, aliás, prolonga o método mítico praticado na literatura moderna por escritores como James Joyce e, no caso do Brasil, Mário de Andrade, o Mário de Macunaíma. Tal como Joyce, André transpõe parodicamente o herói mítico Ulisses para o presente convertendo-o num homem qualquer, no homem comum. Processo de conversão mítica semelhante também se aplica a Penélope. Em registro de reinvenção imaginária e mítica semelhante àquele observável em Ulysses, de Joyce, a Penélope do conto de André Resende é também uma mulher qualquer, como seu Ulisses, entretida ou entediada diante da televisão, traindo seu (anti)heroi à semelhança da Penélope de Dublin.

Retomo as ponderações relativas ao narrador. O narrador da maioria dos contos é um tipo humano comum, não apenas o Ulisses miticamente reinventado por André Resende. De resto, não apenas ele, o narrador, mas o conjunto da variada e marcante galeria humana que povoa os contos. São no geral tipos humanos comuns, atados a ofícios práticos e humildes, alguns confinando com a linha da pobreza, da sobrevivência incerta dos bairros e subúrbios populares do Brasil. Vivem o presente banal, a rotina sem horizontes ou largas perspectivas. Cito uma das passagens que anotei, mas poderia citar uma outra igualmente ilustrativa: “Nascido em bairro sem personalidade, quase favela, e talvez por ter estudado em escola pública, não queria ver seus dias se passarem ali, trabalhando como carregador de madeira” (p. 28).

São vidas assim pequenas que se dissolvem na poeira antes de alçarem voo. Um outro conto, “Novo dia”, repisa e refina no título irônico as vidas desbotadas que o narrador objetivo esmiúça para o leitor. Volto a mencionar literalmente o narrador e bem a propósito ato-lhe um adjetivo que me parece bem apropriado: objetivo. Pois é de ordinário assim que se comporta o narrador dos contos de André. Como assinala claramente no primeiro conto, um dos melhores do livro: “... nunca fui de escrever sobre sentimentos e sensações” (p. 11).

Coerente com esse princípio, ou artifício dissimulador, o narrador típico dos contos de André pouco revela de suas profundezas, procede no geral como se fosse um poço sem fundo, uma superfície transparente onde apreendemos os movimentos exteriores da vida. É assim sintomático o fato de o leitor não apreender nesse mundo de fronteiras tão fechadas e banais qualquer drama humano mais perturbador: vidas frustradas traçando linhas de fuga ou revolta, conflitos que abalem a superfície rotineira dos incidentes. Mas convém desconfiar desse narrador, pois entre muitas entrelinhas ele parece dissimular bem mais do que nitidamente escreve. Esse é talvez o grande mérito dessa obra, pois ela sugere silêncios e pausas movendo-se nos intervalos obscuros das entrelinhas bem mais do que o autor comunica nas linhas transparentes do texto.

Na linha da aparência, a ela voltando, lendo o texto enquanto matéria objetiva, como diz o próprio narrador, deixemos que a vida transcorra com “cada coisa de cada vez”. Este refrão, bem mais que isso, recorre em vários contos do volume. Sugere, seguindo uma das pegadas do narrador, uma sábia ou resignada aceitação da vida, ainda quando apertada dentro dos horizontes estreitos acima esboçados. É ainda, frisa o narrador, uma invocação mântrica. Ela sugere que devemos aceitar a vida que é como é, aceitar o imprevisto e a rotina, o tempo como desdobramento de um fio tecido de atos banais, cada coisa a seu tempo, atos como que gratuitos, isentos de fins calculáveis ou fatalidade. E aqui volto a seguir a pegada desse narrador envolvente e enganoso:
“... por enquanto, pensei, vou devagar; uma coisa de cada vez, um pé após outro. Respiro devagar, inspiro ainda mais devagar. Transpiro de um jeito saudável e, tanto protetor solar em minha pele, a ardidura não me machuca – ao contrário, sinto um suor doce. As crianças pulam e sorriem. Jogos e mais jogos, corpos em todas as extensões e proporções. Picolé de limão agora, sapotis no almoço, suco de graviola no jantar. Que é a essência humana, hein?” (pp. 26-7).

Na aparência, como vemos, é tudo banal, tudo de uma simplicidade desatada dos abismos que espreitam as subjetividades conturbadas, os abismos humanos que o leitor precisa escavar sob a superfície desses contos. Tudo banal ou simples como a simplicidade consistente na sábia aceitação da vida como ela é. O narrador se move na superfície ou engana o leitor preso à linha nítida e desatada da aparência? Por que, me pergunto, essa interrogação que fica suspensa no ar depois do ritual mântrico acomodando a realidade no ritmo sereno de um lago cercado pela paisagem plácida e sem choques?

Lendo a orelha do livro (escrita pelo próprio autor?) esbarrei num paradoxo iluminador: “o passado é imprevisível”. Emendo o paradoxo com esta citação extraída do conto “O círculo de Parmênides”: “Mesmo aprendendo o sentido real das experiências da vida, nada, nenhuma lição, supera o dia vivido. Chamei a isso, não sei se de forma correta, de círculo de Parmênides” (p. 173).

Também aqui convém desconfiar do narrador, pois ele espeta no texto outro paradoxo logo em seguida à passagem que acabo de citar. Alude a Parmênides, matriz da metafísica do ser refutado por Heráclito, fundador da outra grande matriz da metafísica ocidental, para logo afirmar que tudo passa, tudo muda. Isto, sabe o leitor, é Heráclito, autor de uma passagem célebre na história da filosofia ocidental, aquela segundo a qual nunca mergulhamos duas vezes no mesmo rio. Logo, o narrador embrulha, aparentemente por erro, as duas grandes matrizes antagônicas da metafísica.

A grande intuição ou aporia que identifico nos melhores contos de André Resende consiste nessa contradição entre Parmênides e Heráclito recriada ficcionalmente por esse narrador arredio e opaco. Como justificar o paradoxo segundo o qual o passado é imprevisível? Porque o passado atormenta esse narrador que na aparência desliza sobre o poço sem fundo da invocação mântrica segundo a qual acolhe tudo a seu tempo, segundo o acolhimento da sucessão apaziguadora, com cada coisa em seu lugar, com a vida como ela é. Esse narrador não se liberta do passado e ao dobrar-se sobre ele, ao convertê-lo em matéria de memória e obra de imaginação se defronta com esse paradoxo iluminador e atordoante: o passado é imprevisível. Entre Heráclito e Parmênides, que perfazem uma aporia metafísica, o narrador acolhe a vida insolúvel e assim arremata o conto e o livro: “Engraçado a vida. Julgava tudo isso passado, que estivesse distante de situações parecidas. Pensei que nunca repetiria minhas histórias. Então me casei, me tornei pai”. É como se ecoasse o verso célebre de Manuel Bandeira diante da irresolução da vida: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.

2 comentários:

  1. Muito bom ver "Uma Coisa de Cada Vez" resenhado. Contos aparentemente suaves, alguns oníricos, ora dão asas, ora resignam, ora sacodem o leitor em suas entrelinhas.
    Uma punhalada no último conto, O círculo de Parmênides, no qual, “uma coisa de cada vez”, mantra ao longo do livro, mostra-se como frase odiosa para o menino. Aí não tem jeito, hora de reler alguns contos e ver como este menino, já então crescido, atribui novo sentido à lembrança que lhe atormentava, alterando seu passado, tornando-o imprevisível.
    Anna

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  2. Anna:
    muito grato pela leitura e o comentário. A observação relativa ao último conto, embora muito sumária, é importante para esclarecer a compreensão crítica do leitor.
    Fernando

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