quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Último Humanista


Fui mordido por um cachorro quando tinha três anos de idade. É uma das mais remotas e traumáticas memórias de minha vida. Talvez por isso costume lembrar com prazer a definição do uísque proposta por Vinícius de Moraes, uma das maiores autoridades no assunto: o uísque é o cachorro engarrafado. Traduzindo-a a meu modo, não gosto de cachorro, não confio em cachorro. O único cachorro que tenho como amigo é o uísque. Indo adiante, sou um humanista impenitente. Olhando à minha volta, todos os dias, começo a desconfiar de que sou o último. Meus semelhantes, decerto desiludidos do convívio humano, preferem cada vez mais a companhia dos cachorros.
Quem lembra ainda uma canção de Waldick Soriano, o rei do brega, num tempo em que a classe média letrada tinha o pudor de ser confundida com esse tipo de música, e antes de tudo padrão de comportamento, na qual ele orgulhosamente se distinguia do cachorro? “Eu não sou cachorro não”, gemia o cantor magoado com o sofrimento que a amada cruel lhe impunha. Hoje uma canção dessas seria inconcebível. Não por ser brega. Bem pelo contrário, a julgar pela qualidade corrente do que se ouve, a canção de Waldick seria hoje louvada como um clássico da canção popular. A canção seria inconcebível porque o cachorro foi elevado a uma condição de privilégio amoroso invejável. Falando por mim (por quem mais poderia falar?) passei a invejar caninamente os cachorros. Todas as tardes saio para caminhar no calçadão da praia e assisto sempre, de coração cortado, a esse espetáculo invariável: meus semelhantes, sobretudo mulheres, passeiam exibindo orgulhosamente seus cachorros. Muitos saem enfeitados com coleiras coloridas, penteados caprichosos, todos talvez zombando da indiferença com que nós humanos nos tratamos.
Outro dia fui visitar um amigo internado na UTI (U Teu Inferno, segundo minha tradução). Diluído num círculo de parentes e amigos do enfermo, fiquei sem assunto durante mais de uma hora. Afinal, fui sem cachorro na coleira, sem cachorro no coração, sem misantropia na ponta da língua. Todos os presentes falavam amorosamente dos seus cachorros: de salão de beleza para cachorro, comida para cachorro, clínica idem, toda uma rede de serviços para cachorro. Ninguém mencionou sequer (juro!) o nome do meu amigo enfermo, que aliás morreu poucos dias mais tarde.
Mudo de cenário. O condomínio onde moro. Quase ninguém se cumprimenta, quase ninguém se conhece ou manifesta interesse em conhecer o vizinho, literalmente o próximo. Descobri, no entanto, um meio infalível de me darem atenção. Entro no elevador e esbarro na vizinha atada à coleira do seu cão. Observo casualmente: como é lindo o seu cão... Ela muda automaticamente. Graças ao cão amado (por ela, claro) recolho dois grãos de atenção ou dois dedos de conversa de alguém que me ignorava e continuaria a fazê-lo, não fosse a dissimulada atenção que concedi a seu objeto de amor.
Não há dúvida de que está em processo uma experiência de deslocamento afetivo na cultura hiperindividualista em que vivemos. A isso se soma uma noção generalizada de hedonismo que agrava ainda mais relações humanas já por si difíceis. Embora não duvide do amor que meus semelhantes devotam a seus cães, acredito antes de tudo que a devoção é sintoma de indiferença pelo próximo, sintoma de uma crescente dificuldade de convívio com o outro humano. Longe de mim idealizar esse outro humano no qual me reconheço. Sei dos horrores de que somos capazes. Mas sei também da grandeza, de uma gama de expressões humanas que nos salvam ou atenuam o avesso cruel da nossa condição. Bem ou mal, é com meu semelhante que me entendo e desentendo, já que compartilhamos uma língua comum, um código de sentido opaco e instável, mas sempre reconhecível. Além disso, já não tenho idade para aprender a latir e sujar de cocô as calçadas da cidade. Não bastasse tanto, sinto ainda na orelha os dentes do cão que me mordeu quando eu não passava de uma inofensiva criança de três anos. Em suma, fico com o cão engarrafado de Vinícius de Moraes.

6 comentários:

  1. Seus textos, caro Fernando, são sempre desafiadores para os meus neurônios, que atualmente andam sublevados, irredutíveis em sua greve de protesto contra o excesso de estímulos e o infinito de assuntos a ordenar e concatenar (niilistas, eles fazem como o Pessoa: se não podem ter "o inteiro mar", então só aceitam "a orla vã desfeita").

    Você está entre alguns raros que sabem muito, e tanto que não cabem em certas medidas, mas extravasam no espaço virtual. Estamos em plena revolução, que, como dizia o "camarada Mao", não é um bordado, mas é, digo eu, um caldeirão vulcânico-alquímico, no qual se misturam, em lava plutônica, as múltiplas experiências. Sempre que leio seus textos, sinto-me como Alice (a do Disney, não a do Lewis Carrol) tentando ter à mão ouriços e flamingos, ao mesmo tempo. Então me rendo a ser simples leitora, o que já não é pouco e por vezes é suficiente.
    Mas este texto é curto, e fala de cães, creio que tenho sobre isto algo a dizer, e que os neurônios não se recusarão a dizer quelque chose.
    Era eu criança, quando alguém deixou em nosso jardim uma vira-lata bebê, que ganhou o nome de Faísca, e só não falava, tudo o mais fazia pra dizer às seis crianças que as entendia e lhes pertencia, para sempre. Entre suas proezas, lembro-a sentada quietinha, sob minha carteira, no colégio, ou dançando dum lado ao outro em busca de agarrar o turíbulo que meus irmãos balançavam para perfumar a missa do amigo padre João, polonês fugitivo da guerra. Mas como nada é pra sempre (eis a primeira ilusão da alma canina), nossa mãe, futurando ninhadas de cães rafeiros, conspirou com nosso pai e despediram ambos a cadela sem nada nos dizer. Quinze dias ausente, para nossa aflição infantil, ela voltou, e meu irmão Klaus, primogênito que era nosso líder e se pretendia detetive, decifrou-lhe nas unhas compridas e no cheiro de peixe que estivera em alguma praia distante, mas a saudade fora tanta que achara o caminho d volta. Era um domingo, minha mãe lia o jornal na varanda, quando ela irrompeu como um furacão, em saltos, latidos e lambidas, espedaçando o jornal, mas acendendo emoção viva em nossos corações. Mais forte, porém, era a razão humana, e novamente nossa mãe conferenciou com nosso pai, deportando-a ambos, desta vez definitivamente, e com nosso desolado conhecimento. Partiu para um sítio, onde um caseiro lhe pôs o nome Diana. Drástica interdição em que nem o nome se permitiu. O trauma foi tal que me ficou inconsciente. A única foto em que ela aparecia, cortei-a, restando-me hoje apenas a patinha branca agarrada por minha mão. (continua)
    Luiza Nóbrega.

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  2. Andei pelo mundo sem ter nunca mais um cão. Os cães não me diziam nada, salvo quando sua proximidade me parecia ameaçadora. E eu sempre a julgava ameaçadora, pois não entendia de cães patavina. Mas tinha sempre gatos, talvez apanhada pela sedução misteriosa que deles se irradia.
    Anos decorridos, surgiu-me à frente um cão específico. Mistura de cavalier com cocker, e já com quatro anos de vida, ele destacou-se da matilha que um amigo trouxera de Petrópolis para Ipanema, e me cativou instantaneamente, de tal modo que o levei do Rio pra Lisboa, trouxe-o de férias e o levei de volta. Tinha carteira do consulado, comia arroz integral com verduras e bife de galinha, ganhava de sobremesa cápsulas de óleo de fígado de bacalhau e tomava banho com shampoo johnson. Se errei ou acertei, eu, que não sou madame, não importa, não vem ao caso. O que importa é que ele merecia muito mais que isto. NÃO ERA UM CÃO. ERA ALGUÉM, alguém movido por uma inquebrantável vocação para ser feliz. Rarissimamente latia, compreendia tudo e mais alguma coisa, e amava a todos sem distinção, espalhando riso e afeto por onde passava. Nunca agrediu uma mosca, ladrou apenas uma vez contra um mau caráter que me queria agredir, mas, em contrapartida, foi um dia atacado pelo labrador de um português fascista que covardemente atiçou o seu quadrúpede contra o meu para me ferir. Certa vez um velhote me abordou, numa praça, pra dizer que pensava em suicídio quando meu cão lhe saltou para o colo, fazendo-lhe festas, e lhe mudando o humor instantaneamente. Amava a todos: pretos, brancos, velhos, jovens, crianças, adultos, homens, mulheres, ricos, pobres, gregos e troianos. O cão líder da rua o respeitava e protegia. Mas era afoito e ingênuo, e morreu por isto. O dia em que o achei morto, sob a chuva, com um lado do corpo sujo de graxa, foi tão terrível que na semana seguinte embarquei de volta ao Brasil. Vou mandar-lhe uma foto dele por email, e, oxalá, quando você olhar pra ela, pense que os quadrúpedes, como os bípedes, são indivíduos, diferentes entre si. Gostaria também que a cara faceira do Gatinho (era este o seu nome, por ser pacificamente distinto da matilha com quem cresceu) lhe lembrasse o quanto aprendi com o meu cão, sobre as almas humanas e caninas. Com ele aprendi, caro Fernando, que os humanos se deixam cativar pelos cães porque reprimiram sua afetividade, coisa que os caninos não sabem fazer, salvo quando adestrados para atacar e morder, assim convertidos em monstros com a afetividade pervertida. Por trás dum cão agressivo há sempre um homem infeliz, pode crer. Isto me faz lembrar um amigo espanhol, que, certa vez, em Madrid, quando alguém comentava que ao ver um homem com um cão na coleira, tinha pena do cão, retrucou: pois eu, quando vejo um homem com um cão na coleira, tenho pena do homem.
    Luiza Nóbrega.

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  3. Luiza:
    Já que você não consegue postar comentários no meu blog, tomei a liberdade de transpor sua mensagem para este espaço, mensagem que é de resto o comentário que amplia e enriquece o sentido da minha crônica. Saiba que li sua mensagem sensibilizado, sobretudo o fecho dela.
    Alguém que acaso me leia com lentes redutoras poderá identificar uma contradição inaceitável entre meu texto e o seu. Penso o contrário. Minha crônica contém, você percebe, sentidos de ironia e humor, a começar pelo próprio título, que somente o leitor de lentes redutoras deixará de perceber. Por isso frisaria que o fecho de sua mensagem reforça parte da crítica proposta em nome de um humanismo que está bem longe de idealizar seres humanos. Tenho amigas que amam cães como você e também me ensinam algo da beleza e do amor dos cães. Muito grato pelo que você me escreveu. Espero que alguém leia você neste cantinho do meu blog.
    Fernando.

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  4. Fernando e Luiza:
    Escrevi todo um comentário sobre o texto de vocês. Mas ao tentar postar tudo sumiu. Este blog é uma chateação. Nunca consigo enviar meus posts, mesmo depois de levar horas caprichando no estilo.Só para concluir queria dizer a Luiza que foi uma grande oportunidade, a que Fernando nos deu, de conhecer o belo texto escrito por ela.

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  5. Esqueci de "assinar" meu nome e lá foi o meu post como anônimo. Pois bem, não é ANÔNIMO não, é CONCEIÇÃO que nunca mais vai postar nada neste blog que não me aceita.
    CONCEIÇÃO LAFAYETTE

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  6. Conceição:
    Se eu me chamasse Pistache ou Baleia,e tivesse um blog caninista, você não me trataria com tanta impaciência. Eis um mistério que não consigo desvendar: por que você e e Luiza não conseguem postar um comentário no meu blog? Você me fala com tanto humor de adestrador de cachorro, pois vou encontrar para você um adestrador de blog.
    Fernando.

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