quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Leitor


Alan Bullock, um dos mais renomados historiadores do nazismo e de Hitler, declarou que quanto mais aprendia sobre este, mais dificuldade tinha em explicá-lo. O Leitor, baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink, está longe de projetar alguma luz sobre esse terrível capítulo da história humana, mas sem dúvida nos ajuda a melhor compreender outro fenômeno desconcertante: o que levou tantos milhões de alemães a seguirem as determinações de Hitler e sua gang como instrumentos dóceis e inconscientes dos horrores praticados durante aqueles anos de horripilante barbárie.

A ação do filme concentra-se na Alemanha entre os anos 1958 e 1995. Michael Berg (interpretado por David Kross e Ralph Fiennes) apaixona-se na adolescência por Hanna Schmitz (Kate Winslet), mulher bem mais velha de caráter áspero, estranho e enevoado de mistério. Michael apaixona-se perdidamente, como todo adolescente exaltado pela imaginação erótica. Não bastasse tanto, entrega-se dócil e prazerosamente à corrente tumultuosa do amor tecido de passionalidade sexual e intensidade explícita em muitas cenas de sexo e nudez. A esse ardor erótico a trama acrescenta um traço de singularidade que é determinante para o desdobramento dos destinos que se cruzam nesse drama perturbador que bem expõe o quanto a memória do nazismo ronda ainda a consciência social alemã.

O detalhe determinante é este: Hanna é iletrada. Só que ninguém o percebe: nem Michael, nem ninguém que com ela convive. O fato é também ignorado durante todos os anos que precedem o encontro entre eles. Melhor dizendo, e isso fica evidente durante as cenas no tribunal que a julga por crimes de guerra a meio do filme, ninguém entre as forças que com ela serviam ao nazismo tinha conhecimento da sua condição de mulher iletrada. Do mesmo modo que ela então recrutava no campo de concentração jovens que lhe serviam como leitores, também Michael será seu leitor, seu mais fiel e dedicado leitor. Confesso que esse detalhe do filme me parece bastante implausível. Por isso espanta-me o fato de que ninguém que o tenha comentado assinalou espanto semelhante. Hanna atravessa toda a sua vida dissimulando seu analfabetismo, mas ao cabo, condenada à prisão perpétua, finda por autoalfabetizar-se.

Michael é um filho da Alemanha do pós-guerra através de quem notamos o quanto a terrível memória do nazismo continua assombrando a consciência alemã. Acompanha o processo de julgamento de Hanna e outras acusadas de crime de guerra como guardas nos campos de concentração quando estuda direito em Heidelberg sob as ordens do prof. Rohl (Bruno Ganz). Às revelações perturbadoras vindas à tona durante o processo soma-se o drama íntimo de Michael que identifica nos horrores dos campos de concentração muito do que viveu na sua intimidade amorosa com Hanna. A função do prof. Rohl, sobrevivente do holocausto, é provocar na sala de aula a consciência dos seus alunos, induzi-los a tudo interrogar para assim melhor compreender o que em última instância escapa à nossa compreensão. Como ele bem observa, a sociedade funciona regida pela ilusão de que se pauta por conceitos morais. Isso não é verdade, acentua. Ela de fato opera baseada na lei, que é falível como toda criação humana. Portanto, horrores como os produzidos pelo nazismo não podem ser julgados com base na distinção entre o bem e mal, entre o certo e o errado, embora os próprios agentes do mal dele tenham consciência. A sociedade opera baseada numa outra ordem de distinção, a observável entre o que é legal e o que é ilegal.

O momento talvez mais perturbador do filme ocorre quando Hanna, interrogada pelo juiz que conduz o processo, afirma com cândida inconsciência a docilidade com que se submetia às ordens que recebia como guarda no campo de concentração. Enquanto 300 prisioneiras judias queimavam trancadas numa igreja que ardia sob bombardeios, ela simplesmente se recusou a abrir a porta que salvaria aquelas vítimas desesperadas. Instada pelo juiz a dar uma explicação convincente ou aceitável, comportou-se como alguém que simplesmente obedece a ordens de acordo com as quais a sociedade funciona, não importando as circunstâncias. Trocando em miúdos: o papel da polícia é cumprir as ordens necessárias ao funcionamento da sociedade, à ordem que precisa funcionar enquanto tal. Essa verdade banal parece-me explicar bem mais do que pensamos acerca do fato de tantos docilmente submeterem-se à injustiça, à força e à opressão, seja por conivência ou ação efetiva. Em suma, a banalidade do mal, evocando a frase célebre de Hannah Arendt, decorre da docilidade com que burocraticamente nos curvamos à lei e à ordem que garantem o funcionamento rotineiro da sociedade. Suponho que esse fato diz algo da docilidade com que milhões aderiram ao nazismo. O que é verdadeiramente espantoso, tendo cada vez mais a acreditar, não é o fato de tantos dizerem sim, mas o fato de alguns dizerem não rebelando-se contra o espírito da horda e da ordem.

Michael e Hanna são oprimidos por um segredo que os torna solitários, arredios, seres turvados por abismos inconfessáveis. Hanna se reabilita, ou pelo menos torna-se mais livre no dia em que ousa ir à biblioteca da prisão, onde foi condenada à prisão perpétua. Toma de empréstimo um exemplar de “A dama do cachorrinho”, conto de Tchecov que Michael leu para ela quando eram amantes e mais tarde lhe enviou gravado em tape. Mergulha em seguida na solitária recriação de si própria ao se alfabetizar guiada pela voz de Michael e um sistema de aprendizagem que intuitivamente elabora e aplica. Michael recria o tormentoso elo amoroso que os liga quando decide gravar alguns enredos definitivos da literatura universal que passam a povoar a solidão de Hanna na prisão. É assim que de algum modo se reconciliam com o amor que lhes ensombreceu a vida inteira.

Depois de muitos anos na prisão, Hanna é beneficiada pela lei que lhe encurta a pena. Michael é inteirado do fato através de Louisa Brenner (Linda Basset), funcionária da penitenciária. Esta encaminha uma carta endereçada a Michael por ser ele o único elo de Hanna com o mundo exterior, do qual ficou inteiramente isolada durante cerca de 20 anos. Depois de muito relutar, ele a visita. Encontram-se no restaurante ao final do almoço, portanto quase vazio. A conversa é tensa e embaraçosa, ao mesmo tempo carregada de mútua emoção reprimida. Quando Michael pergunta se ela refletiu sobre o passado, ela entende, dentro dos típicos limites do egoísmo humano, que a pergunta se refere a ambos, ao passado de ambos. Quando ele a corrige, ela afinal responde que aprendeu a ler.

Hanna suicida-se pouco antes de ser libertada. Deixa aos cuidados de Michael o dinheiro que acumulou para ser entregue a Ilana Mather (sobrevivente do campo de concentração interpretada por Alexandra Maria Lara, durante o julgamento de Hanna, e por fim por Lena Olin, que nas cenas do julgamento interpreta a mãe de Ilana).
Michael visita Ilana em Nova York, onde ela reside, e leva o dinheiro deixado por Hanna numa velha lata de chá. É um dos momentos altos do filme. Tenso e evasivo, ainda incapaz de falar do real envolvimento que tem com Hanna, Michael depara uma mulher intransigente na dor da memória do que sofreu sob o nazismo. Propõe assim, diante do tom evasivo de Michael, que ele comece a ser honesto. Recusa-se ainda a oferecer-lhe qualquer consolação catártica quando assevera que os campos de concentração nada ensinam, não são fonte de catarse. Se é isso que ele busca, melhor ir ao teatro ou à literatura. Depois de admitir que manteve uma relação amorosa com Hanna quando tinha 15 anos de idade, ele lhe fala do dinheiro deixado por Hanna. Ilana o recusa, pois aceitá-lo seria um ato de absolvição que recusa a seus carrascos. Mas aceita reter como lembrança a velha lata de chá da qual remove o dinheiro devolvendo-o a Michael. A velha lata de chá é como um vestígio de regeneração e beleza embrulhado nos horrores da sua memória de criança internada nos campos de concentração.

Na cena final Michael leva sua filha para uma velha igreja isolada dentro da paisagem rural. No campanário repousa o túmulo de Hanna. As últimas imagens se dissolvem na tela quando ele afinal se sente livre para contar a sua filha, pela primeira vez na vida, sua história com Hanna. Nada traduz mais plenamente o sentido dessa libertação final do que as palavras de Isak Dinesen citadas no ensaio que Hannah Arendt lhe consagra no livro Homens em Tempos Sombrios: “Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas”.
Créditos:
O Leitor (The Reader, EUA, 2008).
Baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink
Roteiro: David Hare
Direção: Stephen Daldry.
Elenco:
Michael Berg – David Kross e Ralph Fiennes
Hanna Schmitz – Kate Winslet
Prof. Rohl – Bruno Ganz
Ilana Mather – Alexandra Maria Lara e Lena Olin
Rose Mather – Lena Olin
Louisa Brenner – Linda Basset
Recife, 3 de janeiro de 2011.

2 comentários:

  1. Fernando, AMEI!

    "O Leitor" é um belíssimo romance! Belo, belo, belo! A técnica narrativa nos envolve do início ao fim. Torna-nos íntimos dos segredos. Não nos fixamos no lugar de leitor nem ficamos na posição confortável, ou não, de testemunha. Sentimos na pele os segredos que serão revelados. A narrativa nos envolve numa espécie de cumplicidade desejada em torno dos segredos entre Berg e Hanna. O filme tbm é muito bonito. Achei muito interessante o seu texto, como vc o construiu, a partir de quê, em torno de quê e vc destacou bem o ponto forte do romance: a memória. É a personagem principal, por assim dizer.

    Bjoca.
    Vivi.

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  2. Vi: Muito grato pelo comentário, que acentua sua perspectiva de leitora do romance. Por isso concluí que você é que deveria escrever um artigo ou resenha para postar no seu blog. Afinal, você conhece tanto o romance quanto o filme. Minha perspectiva é infelizmente mais limitada, pois conheço apenas o segundo. Beijos,
    Fernando.

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