segunda-feira, 16 de abril de 2012

Daniel e a Magra Caetana



Acabo de ser atingido por uma revelação chocante: a imortalidade não existe. Como descobri esta verdade? Muito simples: acabo de saber que Daniel Lima morreu. Daniel viveu tão longa e intensamente que meio a contragosto aderi à crença de que era imortal. Digo a contragosto porque também eu queria alongar-me no tempo como ele compartilhando uma amizade que é simplesmente inefável, que não se traduz nem se calcula em palavra ou qualquer outro meio ou medida. Durante cerca de 30 anos, excluídos uns 9 ou 10 que vivi fora de Recife, tive a ventura de ser talvez seu mais íntimo e constante amigo. Com seu dom único para a amizade, irradiando uma luz e uma energia que um dia uma adolescente deslumbrada (com ele, infelizmente, não comigo) qualificou de carismática, foi dos raros que sempre tiveram amigos verdadeiros. Estes, sabemos, são raros e nem sempre duram. Os de Daniel duraram sempre e quase todos estão ainda aí, embora um pouquinho mais velhos que eu. Entre tantos, os que com ele mais conviveram foram Célia Veloso, Vital Lira e Zildo Rocha.

Fui talvez o mais íntimo e constante, como assinalei, por ser, como ele, um bicho desatado de nós de família e outros constrangimentos sociais que sempre lhe inspiravam suspeita e recusa irreverente. Apesar de haver criado sua ilha imaginária, ou mundo próprio e quase inacessível, ele por vezes deplorava os amigos que casaram e constituíram família. Deplorava-os por sentir que em certo grau os perdia. Casamento e família, aliás, sempre lhe pareceram ameaças à liberdade individual ou mesmo à concepção anárquica da vida que procurou realizar. Portanto, sua aversão de celibatário a essas instituições não derivava apenas da circunstância de ser padre. Melhor dizendo, da condição que livremente escolheu ao vestir uma batina. Mas esta, a batina, há muito desapareceu da paisagem religiosa que habitamos.

Quando o conheci, cobria-se de vestes civis acrescidas de outras aparências que dissimulavam o padre. Aliás, quando o conheci já se despojara completamente dessa identidade regida pela instituição, pela aparência que tende a sufocar ou baratear a essência. A religião em Daniel era um modo irredutível de ser, portanto dissociado de qualquer vínculo institucional. Quando o conheci, vivia como um cigano em estado de prisão domiciliar. Valho-me da expressão pouco imaginosa para sugerir o ser contraditório que sempre foi e de resto se deleitava em assim, sem fissuras aparentes, se dizer e sobretudo viver. Era um cigano no reino da imaginação, não raro transbordante, mas um ser fechado na casa. Costumava por isso dizer que a casa era o seu país; o lugar onde vivia, a sua cidade. Por isso, nunca falava de Recife, assim como nunca perdeu tempo celebrando a ideologia regionalista tão fortemente enraizada no imaginário pernambucano.

Daniel era uma força da natureza. Gostaria de traduzir sua energia singular de vida, sua vitalidade indomável, com expressões menos banais. Infelizmente, são as que me sobram ou no momento me ocorrem. Se há seres dotados para a felicidade, Daniel é um dos raros que conheci e dentre os raros o “singular”. Foi o único que reduziu sua vida, feita de alegria e incansável energia passional, a meios e modos despojados no grau máximo do despojamento. Um amigo me entendeu mal quando, num outro texto nele inspirado e postado neste blog (“Revendo Daniel Lima”) descrevi sumariamente a casa suja que habitava. Minha intenção, ao acentuar esse fato, foi apenas sugerir o que nele havia de despojamento extremado a um grau que o aparentava com a vetusta tradição cínica da filosofia antiga. Sugiro que o leitor pense no exemplo lendário de Diógenes, o cínico.

Se há seres investidos do dom da felicidade, Daniel foi o único que conheci. Sua felicidade se manifestava num estado de alegria e vitalidade que nunca observei esmorecerem. Melhor dizendo, contrastavam em circunstâncias excepcionais com reações de espantoso desequilíbrio emocional. Tentando melhor esboçar seu comportamento do ponto de vista psicológico, Daniel se fechou num mundo cujo controle podia de ordinário definir. Sendo assim, escondeu-se literalmente da maioria das pessoas. Dado seu poder de sedução – ou sua força carismática, como ressaltou a adolescente acima mencionada – é compreensível que atraísse muita gente. Além disso, sendo também padre, atraía pessoas carentes de aconselhamento, orientação ou pura necessidade de desabafo e compreensão. Quando o conheci, já se afastara completamente dos círculos rotineiros de convívio religioso e intelectual. Protegia-se da maioria das pessoas forjando códigos de acesso telefônico restritos aos poucos amigos que o frequentavam, alguns apenas por telefone. Quanto a seu endereço, bem raros o sabiam. No entanto, se assim se protegia, não conseguia, de outro lado, refrear seu temperamento passional e disposições narcisistas que naturalmente o impeliam de volta ao convívio humano, ainda que muito seletivo.Mas não me alongarei em considerações dessa natureza.

Escrevo esta crônica, escavando a mina da memória, sob o impacto da sua perda. O tom da crônica, decerto demasiado analítico, dissimula minha dor que, honestamente, é bem moderada. Afinal, tenho a convicção de que viveu uma vida extraordinária. Diria mais: foi o ser mais livre e feliz que conheci. Não bastasse tanto, viveu sempre guarnecido por uma fé católica inabalável. Ser contraditório, como já salientei, outra contradição sua se manifestava no convívio sem conflito entre uma inteligência insaciável e questionadora, por vezes bordejando o cinismo de quem tocou o fundo das insolúveis imperfeições do mundo humano, e uma fé religiosa inatingível por todas as forças acaso passíveis de refutá-la. Por isso teve amigos agnósticos ou ateus cuja atitude diante da religião integralmente respeitava. Não preciso acrescentar que a recíproca era verdadeira. Afinal, era esse um dos fundamentos da amizade que o prendiam a amigos como eu. De resto, é um dos fundamentos da amizade em geral: o reconhecimento da liberdade e da diferença do outro que amamos.

Lembro-me de que aludiu à Magra Caetana, pela primeira vez, quando eu morava na Inglaterra. Para quem não sabe, trata-se de uma alusão eufemística à morte. Talvez sentisse então os primeiros sintomas da velhice progressiva agravados por cirurgia cardíaca e outros achaques da idade. Mas saudou-a nesse tom, sempre alegre e trocista. A expressão, a partir daí, entrou no rol das nossas brincadeiras delirantemente imaginativas. Muitas vezes, indagando-o sobre o paradeiro dessa assombrosa e inevitável visitante, brincava inventando que ela o temia, que a imortalidade dele estava acima dos poderes com que ela nos amedronta. No fundo, porém, sabemos que a Magra Caetana é a Inescapável.

E eis que ontem à noite, quando Daniel tropeçava na UTI sustendo já sem forças o peso colossal dos 95 anos, eis que a Magra Caetana tomou-o pelo braço e por aí se foram. Embora amparado pela convicção de que os que perdemos sobrevivem na nossa memória, e portanto não morrem enquanto houver memória nos que aqui seguem vivendo, algo dele me falta e me dói. Com ele se vai também minha crença de que a imortalidade existe. Mas seguirei arengando loucamente com ele nos campos invisíveis da memória. Sem esquecer de que devemos uma morte à natureza. Ou a Deus, diriam Shakespeare e ele.
Recife, 16 de abril de 2012.

8 comentários:

  1. Excelente crônica, Fernando. Excelente!
    Um abração comovido.
    Lucivãnio jatobá

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    1. Lucivânio: como grande dionisíaco, Daniel adorava música. Chorava de alegria quando eu cantava para ele uma de suas músicas favoritas, O velho, de Chico Buarque. Na praia dos Carneiros, quando era uma praia privada, firmamos um pacto musical: ele, Zildo Rocha e eu. Quando todo mundo se recolhia para a cama, ouvíamos Beethoven, Bach, Mozart... com as luzes apagadas e sob a luz da lua, o vento tangendo os coqueiros. Adotamos uma norma imperativa: ninguém podia falar, salvo a música.
      Fernando.

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  2. Meu querido Fernando: vistos o tema e a dor nas suas palavras, talvez não seja de bom tom comentar algo sobre esse lindo texto, verdadeiro tributo à amizade. Calo comigo em silêncio as vontades do alento e do consolo, julgo-as completamente incompatíveis com a sensibilidade tributárias da presença da senhora Magra Caetana. Mas dormirei lembrando de minhas verdadeiras amizades e do valor de todas elas em minha vida. Abraço forte Fernando,
    Jampa.

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  3. Jampa:este aí, Daniel Lima, foi uma perda sua. Quero dizer, você perdeu a oportunidade, graças à sua juventude,de conhecer a figura mais luminosa, divertida e alegre de toda essa cultura que conhecemos. Daniel era simplesmente apaixonante. Minhas namoradas, todas que o conheceram, ficavam apaixonadas por ele. Ele é a prova mais eloquente de que a cultura mais letrada e refinada pode rimar com prazer de viver sem pose ou qualquer tipo de afetação. Um grande abraço, Jampa.

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  4. Bom reencontrá-lo na casa de Eduardo. Lindo o seu texto. sempre admiro os homens que tomam a vida como a sua medida.

    anco márcio

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  5. Anco: foi um prazer revê-lo domingo. Quando Duda me falou que você estaria presente, fiquei contente por saber que teria a oportunidade de voltar a conversar com você. Não sei se você chegou a conviver com Daniel. Vocês teriam conversado, tenho certeza, com muito prazer e sintonia. Fernando.

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  6. Conheci Daniel pelas mãos de Vital num belo final de tarde no Poço da Panela. Trazia uma luminosa energia. A casa estava vazia podendo desfrutar do prazeroso encontro e inusitada visita.
    Daniel era personagem de várias histórias e sua vida daria um belo livro.
    Oxalá, um dos seus amigos venha a escreve-lo um dia!...
    Sinto-me grata de ter participado do seu restrito circulo de amigos, contando apenas com a minha sincera amizade.
    Obrigada Fernando, por nos lembrar de algumas passagens da vida do nosso saudoso amigo.
    Beijo, Gislaine.

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  7. Gislaine: é com prazer que posto acima seu comentário em memória de Daniel, da amizade que você e muitos dos nossos amigos compartilharam com ele. Daniel gostava de dizer que exercia o culto da amizade. Isso é fato. Mais que isso, ele foi um homem dotado do dom de se fazer amar e por isso foi dos raros que sempre tiveram amigos fiéis.
    Fernando.

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