segunda-feira, 14 de junho de 2010

Gildo Marçal e a Indesejada das Gentes


Começo por advertir meu suposto leitor, talvez um dos muitos amigos de Gildo Marçal, que esta é uma crônica de memória e perda escrita ao sopro do subjetivismo mais elementar. Acrescentaria que muito relutei antes de aventurar-me a escrevê-la. Afinal, não posso com justiça e verdade incluir-me na categoria dos amigos mais verdadeiros e constantes de Gildo. Assim, penso que outros testemunhariam com maior largueza de fato e sentimento, também com experiência mais intensamente compartilhada, o sentido da vida que Gildo entre nós viveu e a memória que dele reteremos. Penso, por exemplo, em Denis Bernardes, provavelmente sua mais íntima e duradoura amizade. Vieram ambos, imaginem, das noites na Praça Deodoro, em Maceió. Lá, numa já remota juventude, sem com isso insinuar que sejam velhos, começaram a conversar e a conspirar para mudar o mundo e nosso confuso sentido de justiça e beleza e nunca mais pararam de conversar. Dizem as más línguas que falavam de tudo, menos do marechal.

Penso ainda em Edmilson Azevedo, carinhosamente identificado numa crônica de memórias deste blog como o Filósofo Desvairado. A idade, novamente sem insinuar que falo de um velhinho, tornou-o tão mais sensato que agora é ele quem risonhamente se reconhece e reconcilia nos desvairismos vividos. Edmilson foi amigo de Gildo quando graduandos de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Aliás, confessa haver sido antes discípulo do que amigo. Dentre os amigos que Gildo deixou e preservou a vida inteira em Recife, poderia acrescentar Enilda e Emília. Também elas teriam incomparavelmente mais o que dizer e sentir do que eu.

Saltando para amigos de história mais próxima, penso também em Marcos Costa Lima. Com ele Gildo concebeu muito trabalho, política e aliança acadêmica e extra-acadêmica. Recentemente Marcos me falou de Hannah Arendt com o propósito de invocar a dignidade da política. Confesso que raramente identifico esta esquiva e equívoca senhora (friso aludir à dignidade da política, não à mais que digna Hannah Arendt) na política de que tenho notícia. Neste contexto, todavia, a alusão se faz oportuna, diria até necessária. Gildo Marçal foi um animal político como talvez não tenha conhecido outro. Dentro do meu livre entendimento, era político num sentido muito preciso e talvez arbitrário. Era político no sentido de aceitar e brigar com o outro respeitando-lhe a integridade de ser e viver. Embora militante da política, sobretudo em tempos de ditadura que exigiam coragem e convicção extremas dos poucos que a ela se opuseram com atos e palavra pública, nunca nele testemunhei a mais vaga intolerância ou sectarismo tão rotineiros nos círculos da esquerda que frequentei. Também lhe era estranho o ressentimento, outra doença juvenil e talvez ainda mais senil no círculo dos injustiçados e perseguidos.

Evoco um breve episódio do nosso convívio para melhor ilustrar a anotação do parágrafo precedente. Certo dia, hospedado por ele e Simone em São Paulo, conversávamos sobre política na sua biblioteca. Quando entramos a discutir alianças partidárias, esbocei uma crítica que poderia ser compreendida como ilustração do que Max Weber chama de ética de convicção. Ele então me fez um reparo que ainda hoje retenho como expressão de uma verdade indiscutível: disse que eu era moralista demais para fazer política. Confesso não lembrar com certeza se disse moralista ou puritano, mas no contexto da conversa os termos se equivaliam. Foi por esse e outros muitos motivos que me dei conta de minha insanável inabilidade e até inapetência para a militância política. Meu individualismo, não bastasse tanto, é tão insofreável que vivo discordando de mim próprio, discordando de mim e de todos e tudo, antes de tudo.

Gildo seguiu pela vida aceitando-me como sou e aceitando outros, talvez piores, assim como eram. Um bem melhor, mas impenitente gozador, é Paulo Carneiro, divertidamente tratado pelos íntimos como Capitão América. Aliás, o Capitão imita Gildo quase com perfeição. Queria tê-lo agora a meu lado para que melhor avivasse nos meus sentidos a fala inconfundível de Gildo. Pois Gildo gargalhava homericamente com o histrionismo e irreverência do Capitão. Outros ainda, logo desiludidos ou confusos na atmosfera da esquerda dos anos 1970, caíram no desbunde ou erraram pela vida desviando-se de Gildo e de tudo o que ele representava. Gildo aparentava compreender tudo isso, tanto que continuou lembrando com afeto, outras vezes com humor, muitos desses que seguiram ou se perderam por outras vias. Um outro, mais hipocondríaco do que amigo, perguntava-me repetidamente sobre a saúde de Gildo. Um dia ocorreu-me responder assim: Gildo já teve oportunidade demais para morrer. Se continua vivo, é porque é imortal. Logo, cuidemos da nossa mortalidade.

Mas que posso eu escrever do Gildo militante político? Deixo isso a cargo de Marco Antonio Coelho, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho e tantos outros que bravamente lutaram em tempos sombrios, novamente evocando Hannah Arendt, ou ainda in dark times, como escreveu no original. A luta destes e tantos outros não consistiu apenas em manter vivo o comunismo sob a ditadura, mas sobretudo em renová-lo democraticamente. Como fui quando muito companheiro de viagem, o que posso dizer é que tive sempre um fraco pelos comunistas vencidos. Melhor dizendo, é o comunista que nunca conquistou o poder.
Luiz Sérgio Henriques acaba de me enviar um e-mail ressaltando através da citação de um verso famoso de Mário de Andrade a admirável pluralidade humana de Gildo.
Procurei nesta crônica acentuar antes de tudo minha memória do Gildo devotado à amizade. Daí haver intencionalmente citado alguns dos muitos amigos verdadeiros que conquistou e manteve ao longo dos anos. Materialistas ou não, o que de nós sobrevive é a memória preservada no amor dos amigos, pois a mortalidade é a nossa condição comum. Ademais, como Shakespeare escreveu, devemos uma morte a Deus. Gildo pagou a dívida que nós outros também pagaremos. Por isso, e por amor à memória generosa do que amamos, prefiro reter nestas linhas o Gildo que amava a vida e os amigos, o Gildo das gargalhadas que continuarei ouvindo na solidão onde enterramos e cultuamos nossos mortos.

Pergunto-me por fim se Gildo acaso alcançou diante da morte a serenidade tão singularmente expressa por Manuel Bandeira em Consoada, o poema do qual extraí metade do título que conferi a esta crônica. Não seria belo e confortador imaginar que partiu deixando “...lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar”?
Recife, 21 de fevereiro de 2010.

2 comentários:

  1. Bom rever ese post por aqui.

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  2. Caro Fernando:

    Sua crônica faz referências sobre GILDO MARÇAL BEZERRA BRANDÃO como quem viveu sob a mesma atmosfera do mesmo, equivale dizer, somente quem sentiu o cheiro da fumaça do cachimbo de Denis Bernardes falando: "na fumaça vai um pouco..." e esteve na companhia dos encontros e reencontros do filósofo Edmilson Azevedo vendo-o fazer algo de última hora na cozinha, como por exemplo: assar umas batatas inglêsas cortadas as meio, com tempêros de ervas provençais e pimenta do reino moída(com um moedor daqueles... pense!) e aquilo tudo ir ao forno, enquanto a radiola com agulha nunca parava de tocar bem baixinho como fundo musical, isso em plena Olinda.
    As inúmeras noitadas paulistas com garoa, com neblina, com todas as garrafas de vinho e cinzeiros cheios de pontas de cigarros; tudo aquilo se tornou eternizado. As presenças tão marcantes das pessoas ilustres por você mencionadas...mas o Capitão merece destaque contando a história sobre seu patrimônio herdado(a herança) nos confins de algum lugar perdido no sertão nordestino: uma tosca casa de farinha para ser dividida por um sem-fim de herdeiros.
    Enilda criatura das mais modestas quando o tema é inlectualidade, foi e é, como você bem sabe, a pessoa talvez que mais paraninfou essa elite.
    Lukács, Gramsci e Gildo Marçal decerto, estão dando continuidade a tal eternização supra referida.
    "Os filósofos limitaram-se a INTERPRETAR o mundo de diferentes maneiras; trata-se, porém, de o TRANSFORMAR." Marx
    Gildo vive!!!

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