quinta-feira, 22 de março de 2012

Idade e finitude



Uma das ilusões de minha juventude era supor que a velhice implica sabedoria, uma serena aceitação da vida e do envelhecimento gradual e inevitável. Leio gente como Drummond, Philip Roth, Caetano Veloso e outros dizerem o contrário. Mesmo os que envelhecem alegremente, com vitalidade invejável, como é o caso de Caetano, não relutam em reconhecer que a velhice traz sempre limitações indesejáveis, quando não dolorosas, para quem a vive. O espelho, e antes de tudo o próprio corpo, emitem progressivos sinais indicativos da nossa perda de vitalidade. Portanto, ninguém precisa ser um Narciso deslumbrado ante a própria imagem no espelho das águas mutáveis para sentir os crescentes abalos da idade.

Espero envelhecer como Daniel Lima, o mais admirável exemplo que conheci de velhice alegre e plena de energia. Daniel envelheceu com tanta juventude espiritual que nunca consegui vê-lo como um velho. No entanto, ouvi-o muitas vezes deplorar a perda irreversível de vitalidade. Se não se queixava mais abertamente, era provavelmente por fidelidade, não sei até que grau efetivamente assimilada, à sua convicção católica nas virtudes da idade. Afinal, não é à toa que é padre, condição que, somada aos anos de formação em seminário, identificou-se com sua própria vida e visão de mundo. Como Alceu Amoroso Lima, católico ainda mais consistente e convicto que ele, acreditava que a idade e a experiência nos trazem alguma sabedoria, uma maior capacidade de aceitação da vida.
Será que alguma sabedoria advirá de minha velhice? Confesso que hoje considero isso muito duvidoso. O que já sei, e me parece saudável, é que a idade implica uma consciência transformadora da noção que tenho dos limites de minha vida. Melhor dizendo, de minha finitude. Quando jovem, não tinha consciência do quanto sou finito, do quanto minha vida está fatalmente orientada para a minha morte. Por isso tanto me desperdicei, tanto gastei de mim na companhia de gente sem importância, vivendo coisas irrelevantes, que nada importaram para a minha vida. Quantas vezes não errei embriagado em madrugadas sem rumo, oprimido pela solidão da carne, caçando mulheres que nada representavam para mim? O que nelas via e buscava era o gozo momentâneo e fugaz do corpo, a sede do sexo enquanto puro sexo, sem prolongamento ou conexão de qualquer outra natureza. Durante um tempo mais ou menos prolongado, sentia necessidade compulsiva de beber nos fins de semana, ir sempre para os bares e cenários de badalação noturna. Conheci muita gente cujos nomes ignorava. Bebia com essa gente e me enredava num círculo promíscuo sem aderência ou real envolvimento do indivíduo que eu era. Estas são algumas das consequências negativas da inconsciência da idade, da inconsciência de nossa natureza finita.

Hoje sei palpavelmente que minha vida é finita. Sei hoje que vivo para morrer, que em algum momento futuro tudo que sou e sinto e penso se dissolverá em poeira. Dust stardust, nonada. Digo-o isento de angústia, a salvo dos tormentos que oprimem os incapazes de sequer encararem o fato meridiano e incontornável de seu envelhecimento, de sua finitude. Mas não identifico nisso nenhuma bravura, nenhuma coragem especial. Na verdade, considero-me um homem fraco, um homem de coragem muito assustada, ou pouco em si própria confiável. Talvez eu me acovarde e vacile, talvez me acanalhe se souber da morte que chega emitindo anúncios de chegada, alertando sua vítima para a fatalidade do momento último. O que sei é que felizmente tenho sido sempre capaz de encarar todos esses fatos e possibilidades isento de angústia, ansiedade, medo antecipado. Isso, no entanto, não quer dizer que terei a coragem de que precisarei no momento decisivo. Reiterando a sábia lição dos estoicos, o único tempo real é o presente. Logo, cuidemos de deixar os males do futuro entregues a seu tempo, até porque não temos como prefigurá-los. Portanto, ceder à ansiedade de temer o que ainda não é é apenas sofrer por antecipação, na linha do presente, o que não existe, ou não existe ainda. Os males que vierem hão de vir sem que precisamente saibamos o que serão, como serão.

Desdobrando ainda as implicações que hoje tenho de minha finitude, diria que ela é positiva na medida em que me fez mais seletivo em quase todos os sentidos significativos de minha vida. Consciente de que vivo para morrer, de que já vivi pelo menos dois terços do que me cabe neste mundo transitório, aprendi a valorizar o sentido do meu tempo. Já não me passa pela cabeça errar pela noite à cata de aventuras sem importância impelido por fantasias insensatas. Faz anos, por exemplo, que me afastei dos bares e festas onde nunca encontrei motivos de real gratificação existencial. Se há muito incomodava-me já o gregarismo ruidoso e inconsequente de nossas celebrações sociais, das festas onde ninguém está com ninguém e ninguém de fato importa para ninguém, hoje tudo isso me sabe simplesmente desinteressante. Diria mais, diria inconcebível.

Também as leituras e muito do que vivo na solidão e rotina de minha casa, também isso se alterou. Infelizmente, ocupo-me ainda com muita coisa que, fosse eu mais estritamente criterioso, deveria afastar de mim. Por vezes solicitações de amigos, até de meros conhecidos, constrangem-me a perder tempo com coisas que livremente evitaria. Mas aí entra uma inevitável cota de negociação com a vida, com limites de convivência praticamente imperativos. Ou aceitamos esses limites e constrangimentos da vida convivida, ou então nos internamos em algum deserto impraticável. O que sei, em resumo, é que aprendi a governar melhor minha vida e meu tempo depois que assimilei a consciência de minha finitude. Espero ainda, em algum passo improvável do futuro, libertar-me dos livros que já não importam, nem nas prateleiras e menos ainda enquanto matéria de leitura; da música que não se harmonize integralmente com minha sensibilidade; do semelhante que me entrava o caminho e concorre para infelicitar ainda mais a vida e minha obscura e discreta passagem. Ser é conviver, dizia Drummond. Mas a solidão conquistada, a que escolhemos como condição necessária da experiência que carece de recuo em face do tumulto e futilidade da vida, esta amplia nossa ilha simbólica poupando-nos, entre outras coisas, das companhias pouco recomendáveis.

Um comentário:

  1. Ola, Fernando! Tudo é relativo. Jane Fonda chama a isso de terceiro ato.
    Está correta. Velhice não é patologia. É velhice. E ponto.
    Abraços

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