domingo, 18 de setembro de 2011

Elogio da violência



No meu desânimo de ser humano, não é que pensei isso: ame a humanidade. Pois é, assim de cara como de cara estou falando pra você. Ame a humanidade. De cara e no imperativo. Mas reconsidero. Você vai responder que a humanidade é uma abstração e pronto: estamos conversados.
Reconsidero: não ame a humanidade. No imperativo, sim, como no imperativo antes ordenei: ame a humanidade. Não podemos chegar a um acordo? Afinal, como agora livrar-me de você sem antes convencê-la da necessidade de praticar uma violência que não está nos jornais, não está nos partidos, não está nas ruas, nos bares, na sua e na minha vida?
Ame o proletariado. Também não é praticável, sei, esse tipo de violência. Se o objeto é uma abstração menos extensa, ainda assim é isso: uma abstração. Você não levará a sério minha fala imperativa. Noutras: você vai continuar resistindo a meu apelo à violência.
Ame (não mais me escape), ame a sua classe. Média, alta, curta, nanica, marginal, dominante, dominada, não importa. Ame a sua classe. Tudo bem, é novamente a questão lógica. A classe é um objeto menos extenso, mas ainda assim abstrato. Posso eu amar uma abstração, desesperada me perguntará você. E desesperado concordarei: não, não pode. Não ame a humanidade, não ame o proletariado, não ame a sua classe, não importando o quanto seja ela desclassificada.
Vou desistir? Não, não vou desistir. Ame seu inimigo. Você não o amará e ainda aqui compreendo sua recusa. Se você não é cristã (a outra face, irmãzinha, a outra face), eu muito menos. Tudo bem: não ame seu inimigo.
Então ame a mim, que tanto preciso de amor. Por que você não me violenta? Sou também uma abstração, como abstrações são a humanidade, a classe outra, a classe mesma, a classe sem classe? Ame um ser concreto, carente, penitente, peditente de amor. Ame a mim que apelo, que suplico, que imploro à sua delicada humanidade um gesto corrosivo de amor.
Não me fale mais das delicadezas ordinárias que entediam nosso cotidiano geral. Não me fale mais do seu ódio, da sua intolerância, do seu sexo enfastiado, do seu gozo puramente verbal. Não mais me fale, por favor, das trepadas sem gozo, do outro só puro espelho, das mentiras que nos paralisam e sufocam.
Quero apenas e imploro e suplico isso: apenas um belo e inusitado gesto de violência. Quero apenas que você me ame; que despreze a delicada e comovente humanidade que a impele para a generosa praticação da indiferença, da recusa, do medo, do desprezo pelo outro. Me violente, amor, assim como imploro e não mais ordeno. Me violente e me ame, amor, como você, como ninguém mais ousa amar ninguém.
Publicado originalmente no jornal O Rei da Notícia, no. 4, Recife, julho, 1985.

2 comentários:

  1. Muito bom! Vou compartilhar no face, tá? Bjo.

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  2. Ótima reflexão... É o outro que nos define e nos forma.

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