sexta-feira, 19 de março de 2010

Misael, o Misógino


O Amor nos Trópicos – Misael, o Misógino.
Severo Machado

Misael trocava de mulher como troco de camisa. Quero dizer: tenho 82, transpiro abundantemente e detesto camisa suada.
Misael veio lá de baixo, do pé da escada. Lá embaixo, no piso da madeira roída pelo cupim, mulher era matéria escassa, mais rara que beleza em barraco de favela. Misael fez de tudo, mas foi lenta e tenazmente subindo os degraus de madeira roída pela miséria: foi porteiro, balconista, vendedor de livro, bebida, auxiliar de escritório, gigolô, bancário... Cursou escola pública aos trancos e barrancos, mas aprendeu que a educação era instrumento eficaz de ascensão social. Por isso afiou as virtudes da razão na lâmina fria do saber prático. Nada de literatura, humanidades, ficção de desocupado, de gente cheia de minhoca na cabeça. O negócio é matemática, ciências, o saber que muda a realidade e eleva saldo bancário. Pulando de galho em galho, às vezes escorregando, outras raras caindo, Misael chegou à Faculdade de Direito do Recife. Na primeira oportunidade, tornou-se fiscal da receita através de concurso. Nesse tempo já trocava de camisa com alguma freqüência, embora nem transpirasse tanto nem detestasse camisa suada.

Misael subiu como foguete em noite junina. Noite junina do Nordeste, onde a cultura urbana retém a camada renitente dos costumes da roça e a ordenação errática do asfalto semelha um acampamento de retirantes. Cinco anos depois de vida de fiscal da receita, ei-lo vaidosamente posto no alto de uma cobertura suspensa em um condomínio de luxo. Lá embaixo o mar de Boa Viagem quebra na areia iluminada pela luz noturna. Agora Misael troca de camisa todos os dias e aprendeu a detestar camisa suada. As mulheres cheiram mal, resmunga depois de largá-las suadas e descontentes na cama. O salário é bom e seguro, mas não compra tudo.

Misael entra na sala e liga a tv. O economista – professor universitário e Ph.D pela Harvard University, USA – entrevista o assessor para assuntos de administração pública – professor universitário e Ph.D pela Oxford University, England:
Você acha que a instituição de fiscais de fiscais seria uma solução para as práticas corruptas freqüentes na Secretaria da Fazenda?
Poderia ser uma boa idéia. Sabemos porém que os fiscais de fiscais também são humanos. Logo, haveria o risco de eles cederem à mesma tentação que impele os fiscais ao uso corrupto das suas atribuições públicas.
Misael deu uma gargalhada e desligou a televisão. Melhor ir caçar mulher. Mulher é como camisa: uso uma vez e jogo na máquina de lavar. Há quem faça pior, disse ele a uma chorosa com a tocante intenção de a consolar.

Misael era bruto com as mulheres. No convívio dos amigos, porém, era um doce de pessoa. Gargalhava por um nada, servia generosamente os amigos, grudava-se a eles nos bares ruidosos onde assistiam a jogos de futebol. Ia com freqüência acompanhado por mulheres, sempre bonitas. Mas não lhes dava a mínima importância. Parecia entender que a função delas era tão-só adornar o ambiente e fornecer evidência de sua posse. Misael exibia mulheres como os caçadores de feras exibiam na sala de visitas a pele dos leões abatidos num safári. E os amigos o invejavam: Misael é muito macho. Gostar de mulher é aí.

Tarde de domingo na cobertura de Misael. O tédio, quase uma fria lâmina depressiva, pesava-lhe horrivelmente no coração. Odeio as tardes de domingo. Meus amigos estão felizes, reunidos em família, se empanturrando em mesas fartas de comida e alegria doméstica. Liguei para Gilberto Rocha e logo ouvi a família ruidosa e feliz lá no fundo da linha. Liguei em seguida para Álvaro Carvalho e é sempre a mesma coisa. Todos eles se fecham em família, comem e bebem e tagarelam até o cair da noite. Todo mundo feliz, todo mundo cercado pela família e eu aqui penando solitário dentro desta cobertura imensa e vazia. Que fazer, ele se pergunta e se repete roendo as unhas do tédio. Corre ao telefone e liga para Vadinho, o corretor de puta:
E aí, cara?
Tenho uma mina pra você, Misael. Arquivo novo, gostosa de doer. Chama-se Inocência White.
Cacete, cara, como é que uma puta tem um nome desses?
É filé, Misael. De classe média, fez até universidade. Mas é doidinha de pedra, cara. Faz pouco que saiu das mãos de Zoca Porrada. Conhece?
Quem não conhece Zoca, Vadinho?
Pois é, cara. Ele esbarrou na mina por aí, se desmanchando na droga, batendo prego nas calçadas da Rua da Moeda. Até ficou com ela uns tempos em casa. Mas se ela é doida de pedra, ele é barra pesada. Você conhece o tipo. Inocência vivia levando pancada, mas acho que gostava, pois não pegava a estrada de volta pra casa. Vive repisando aquela idiotice: sem medo de ser feliz. Diz que aprendeu essa besteira de um vidente que antes foi psicólogo e hoje é um publicitário quase tão rico quanto Washington Olivetto. Um dia Zoca encheu os bofes e deu-lhe um chute na bunda. Foi quando ela veio parar aqui. É puro filé, Misael. Vai encarar?
Que mais eu posso fazer num domingo desses, Vadinho? Manda a mina, cara. Mas comigo você já sabe: puta eu uso uma vez e nem mando para a máquina de lavar. Puta eu jogo fora. A gargalhada de um abafando a gargalhada do outro.

Misael casou. Antes disso deu para beber pesado. Enchia a cara todas as tardes de domingo porque já não suportava a solidão e o tédio fechando-se sobre as paredes desertas da cobertura. Casou com a filha de Honesto Jardim, criminalista. Honesto era mais rico que os próprios bandidos ricos a quem protegia das malhas frouxas da justiça brasileira. Ganhou tanto dinheiro zelando pela fortuna suja dos seus clientes que Misael se sentiu pobre e humilhado quando pela primeira vez entrou na sua cobertura. Diva, a filha de Honesto Jardim, era uma mulher dengosa e bonita. Também falava alto e pelos cotovelos, mas ninguém lhe dava ouvidos. O pai pagava-lhe todos os caprichos sob a condição implícita de que sempre lhe rendesse vassalagem irrestrita. Era uma prisão tão doce, e cara, que nunca passou pela cabeça de Diva uma palavra de protesto ou gesto de desagrado. Seu último capricho foi apaixonar-se por Misael. Honesto fez uns cálculos mudos, resignou-se a ganhos modestos e suspirou consentindo: poderia ser pior.

Misael mediu ganhos e conseqüências, mediu sobretudo o custo doloroso dos domingos de tédio e solidão, e não pensou duas vezes. Não previra, entretanto, o quanto lhe custaria a presença diária de Diva na mesma cama, as noites amordaçadas pela mesma camisa, a mesma malha suada, a consciência de que a camisa atirada à máquina de lavar pela manhã voltava à sua cama na noite do mesmo dia. Aumentou a dosagem do whiskey e assim a embriaguês entrou-lhe no sangue e na rotina.

Diva, vou sair com Gilberto Rocha e Álvaro Carvalho. A gente vai ver o jogo do Náutico e depois bater um papo no Colarinho.
Toda mulher é suja, Alvinho. Até a minha.
Ia já pelas tantas, a mesa do Colarinho tombando sobre as ondas do alto mar, quando disparava esse tipo de comentário nos ouvidos de Álvaro e Gilberto. Eles riam deliciados e replicavam com ditos equivalentes. Tudo aquilo: a presença ruidosa dos amigos, os jogos de futebol, a idolatria por Romário e Kuki, o whiskey derramado sobre as mesas do Colarinho, tudo aquilo Misael descobriu que era o seu gozo real, seu prazer de viver. O mero e vago pensamento de que precisaria voltar para casa, deitar na cama ao lado de Diva, vestir a mesma camisa já rota e suada, isso o atormentava sem reparação. Por isso bebia.
E por aí foi nadando em álcool e dinheiro. A fortuna de Honesto Jardim crescia sem pausa e com ela, por afinidade ou contaminação, também crescia a fortuna de Misael e Diva. De tanto vestir a mesma roupa e aspirar o mesmo suor noturno na mesma camisa gasta e suada, erraram a medida de alguma dose e o acaso deu-lhes uma filha. Misael roeu a corda, lamuriou-se à borda dos ouvidos cúmplices de Álvaro e Gilberto: Por que não nasceu homem, porra? Mulher é coisa suja, mesmo quando é filha. Os amigos riam e por fim o confortavam, senão com palavras, por certo com as garrafas de whiskey enxugadas na mesa do Colarinho.

Álvaro e Gilberto adoravam atiçar a misoginia de Misael:
Misa, diga aí cinco coisas amáveis contra a mulher.
1 – Mulher não tem senso de humor. Nem de amor, pois ama com completa insensatez.
2- Quem pode confiar na sensatez / de um bicho que menstrua todo mês?
3 – A mulher acredita em amor eterno. Provando que não tem juízo, quando ama quer logo casar iludida com a tolice de que o casamento sacramenta a eternidade do amor.
4 – A mulher é incapaz de renunciar a suas ilusões amorosas, salvo no caso em que a ilusão de um amor maior ocupa o espaço do amor gasto ou insatisfeito.
5 – Mulher é um bicho muito complicado.
6 – A mulher é uma terra incógnita.
Chega, Misa. Pedi apenas cinco. Você não deixa pedra sobre pedra.
Que é que eu posso fazer, Alvinho? Esse deserto é fértil. Se eu abrir a torneira, vai haver um dilúvio no Colarinho.
E riam, riam de se dobrar sobre a mesa.

Passaram os anos e outros acasos que lhe trouxeram mais dois filhos. Quero dizer: mais duas filhas. Ele se desesperava na intimidade dos amigos, roía o pó do destino inclemente e desabafava ainda e sempre: por que não um homem, porra? Mulher é suja. Mais alguns anos e estarão menstruando como a mãe. O pior é que são camisa que gruda no corpo, bens de propriedade definitiva. Onde uma máquina de lavar que me liberte dessas camisas sujas grudadas a meu corpo? Os ouvintes e confidentes complacentes já não eram Álvaro e Gilberto, nem o cenário era a mesa do Colarinho. Misael olhou em torno e se sentiu confortado pelo atmosfera cúmplice dos presentes reunidos numa sala dos Alcoólatras Anônimos.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Somos Todos Suspeitos



Somos Todos Suspeitos
Severo Machado

Gosto de mulher morena, rabuda e safada. Meu amigo Antonio Senile fica chocado quando lhe digo isso. Senile é autor de uma frase decisiva para que me tornasse seu amigo. Disse que os amigos verdadeiros compartilham um segredo: o privilégio da intimidade. Nesta, na intimidade desatada das convenções hipócritas de toda ordem social, somos como somos. Pelo menos na medida em que o podemos ser. Segredo ou dom, depois disso aprendi a identificar e definir um amigo. Aliás, tenho apenas um: Antonio Senile. O amigo é aquele com quem comungamos o privilégio da intimidade. Senile, que pode ser uma flor de pessoa, me confessa horrores que jamais ousaria confessar no confessionário. Digamos melhor: no divã da analista, pois Senile, como eu, é ateu.

Senile é um lírico da carne. Tem um forte por mulher, como eu. Por que forte? Porque a carne não é fraca, e sim forte. Esta eu roubei de Luciano Oliveira, outro amigo de Senile. Aliás, dizem que ele a roubou de Boris Pasternak e este de quem? Nada de novo sob o sol, já observava sabiamente o autor do Eclesiastes. Logo, somos todos ladrões.

Negativo como uma noite escura assaltada por trovoadas, Senile é no entanto afortunado o suficiente para dizer com convicção que tem dois amigos: Luciano Oliveira e eu. Tenho apenas Senile, que é já demais. A maioria das pessoas não tem ninguém, embora tantos tolamente se iludam confundindo amizade com bloco de carnaval, corporação de corruptos, site de relacionamento. Senile é um lírico da carne. Daí chocar-se quando digo que gosto de mulher morena, rabuda e safada. Senile escreve ainda soneto de amor para as mulheres que quer levar para a cama. Soneto com decassílabo rimado e chave de ouro. A um amigo perdoamos tudo, até isso.

Ligou quando eu estava de saída para o trabalho. Doente, como previ. Senile é mais hipocondríaco que eu. A doença nele é sintoma narcisista. Assim retém a atenção dos amigos, antes de tudo de si próprio. Foi o diagnóstico da analista para quem transfere renda isenta de imposto há doze anos. Jamais cairia nessa. Além de não acreditar em psicanálise, a analista é morena, rabuda e tem jeito de safada. Minha transferência logo seria assédio sexual. Curto circuito na teoria da fala. Senile é lírico. Por isso continua falando no divã, transferindo pulsões, desejos e sobretudo renda para a analista morena, rabuda e safada. Quando o assunto é sexo, ser e parecer se confundem na minha imaginação. Logo, se ela parece safada, é safada.

Senile queria um favor. É nisso que dá ter amigo. Pediu-me para recolher em seu nome, numa loja de produtos promocionais, uma sacola de notebook. A que usava, comprada na tal loja, rompeu a costura depois de dois meses de uso. Porcaria. Senile foi à loja, reclamou do produto e exigiu a troca devida. Foi surpreendemente bem atendido, pois sequer levou a nota de compra. Como o produto estava em falta, a atendente prometeu entregar-lhe uma sacola nova tão logo chegasse nova remessa. Cumpriu a promessa, dias mais tarde, ligando para Senile, que combinou proceder à troca na semana seguinte. Mas adoeceu no entretempo e recolheu-se ao divã. O doméstico, não o que desejaria, o da sua analista.

“Procure Sueli. Ela lhe entregará a sacola nova”. Esse nome mágico, prenhe de odor e carne, logo produziu um milagre na minha imaginação, tanto que esqueci a chateação do favor para o amigo e me apressei em atendê-lo. A mera enunciação deste nome Sueli abre-me nas janelas da imaginação um sopro de bordel e nudez. Logo vislumbro um corpo moreno, rabudo e safado deslizando dentro da penumbra de uma buate enevoada por fumaça de cigarro e odor de suor e perfume barato. Eu seria um divã cheio para a analista de Senile.

Cheguei suado e ofegante. Ao longo do trajeto, dirigindo ansioso, figurava o corpo de Sueli como o da mulher bandida de Double Indemnity, que algum tradutor idiota converteu em Pacto de Sangue. Quem identifica na trama do filme de Billy Wilder um pacto de sangue nada sabe do sexo e de outras forças sombrias da natureza humana. Sueli não era exatamente o que figurei na minha imaginação doentia, mas era morena, rabuda e safada. Não era uma mulher, era um filme noir. Quando vejo uma mulher como Sueli, logo me torno um bandido de filme noir. O leitor dirá que isso é um efeito literário previsível e barato. Que posso fazer? Dou-lhe o endereço da loja para que confira com os próprios olhos. Antes de tudo, com a minha imaginação. Se tiver a imaginação de Senile, talvez rabisque um soneto qualquer, com decassílabos rimados e chave de ouro. Sueli não merece nem quer isso.

Recusou-se a entregar-me a sacola de Senile. Balbuciou desculpas, alegou que Senile fora atendido por outra pessoa, que não a autorizara a entregar encomenda nenhuma. Mas recusava a sacola enquanto prometia outra coisa. Desde quando entrei, percebeu meu olhar despindo-a da cabeça aos pés, tanto que se sentou encabulada e cruzou as pernas, gesto que alargou o campo iluminado das coxas apertadas na saia justa.
Perguntei se não gostaria de jantar comigo num restaurante do Shopping Boa Viagem. Odeio shopping. Odeio sobretudo o Shopping Boa Viagem, mas por uma mulher como Sueli um homem fraco como eu (quero dizer, forte) faz qualquer sacrifício. Ela topou, mas não confiou entregar-me a sacola de Senile. Na cama do motel, depois de um jantar regado a vinho tinto e muita fantasia emporcalhada, pois tenho um fraco (i.e, um forte) por fantasias sujas quando estou com mulher, pior ainda quando penso em mulher, ela me confessou candidamente: “Te dei meu corpo, safado, mas não te dei a sacola do professor. Por quê? Ora, porque fui treinada assim pela dona da loja. Ela me ensinou desde meu primeiro dia de trabalho: Não confie em nenhum cliente, Sueli. No Brasil, até prova em contrário, todos são suspeitos”.

domingo, 7 de março de 2010

Sem Medo de Ser Feliz


O Amor nos Trópicos - Sem medo de ser feliz.
Severo Machado

Certo filósofo observou que uma das atitudes humanas mais insensatas consiste na ilusão da felicidade. Deitando fel no prato dos otimistas, concluía que não estamos neste vale de inadimplentes para ser felizes. Inocência White, a heroína deste conto, ouviu porém outra voz ou eco. Traída pelo ouvido, antes que traída pela vida, não sabia se a frase viera do Céu ou de algum publicitário. Sabia apenas que dizia: sem medo de ser feliz. Se veio do Céu, veio acrescida do número da conta bancária de Deus, na qual o crente deve fielmente depositar sua contribuição para a bem-aventurança dos pastores e ministros religiosos deste mundo.

Mas o assunto da nossa heroína, não confundir com outra coisa, é a busca da felicidade através do amor. Como a grande malandragem da indústria publicitária é induzir nos tolos a fome e a vontade de comer, Inocência passou a ouvir e a sonhar em tudo a frase sedutora. Sem medo de ser feliz, ela mordeu a corda de Luiz Natalino, o pedófilo. Mal caíra na vida, ou nos doze anos, e logo ele entrou e se foi encostando e instalando nos vazios largados pelo pai biológico que ela mal conheceu na infância. Seguindo-a com sinuosidades de pai amoroso, ambos libertos do interdito do incesto, Natalino foi entrando sem bater, mas também sem forçar. Enquanto com a mão sábia soprava promessas irrealizáveis, com a boba media a temperatura exaltada entre as coxas de Inocência. Adeus virgindade e outras campinas, adeus concha ferida da adolescência. Luiz logo sumiu, pois a carne muda e as meninas são tantas para tão curta vida.

No rastro dele logo veio Sérgio Majo, astro da televisão cuja função era atrair a garotada para os castelos de fumaça do consumo e da futilidade precoce. Sérgio nasceu em Serra Talhada, mas logo trocou o sobrenome de batismo, Pereira, pelo espanhol Majo, que melhor atende à persona que projetou na mídia. E ela foi e cedeu e se perdeu como perdia o ônibus de subúrbio nas manhãs de ressaca. Tantas ele fez, Sérgio Majo, antes e depois de Inocência White, que um dia o escândalo estourou. Sendo astro da mídia, Sérgio era notícia de alta cotação no mercado do consumo. Mas a mão limpa da impunidade, privilégio de classe no Brasil cordial, lavou a mão suja do escândalo e Majo voltou a desfrutar da fama garantida pela telinha mágica e das gatinhas que dão tudo sem medo de serem felizes.

De Sérgio Majo para Sílvio Inocêncio, o publicitário, a passada foi mais curta do que a brecha entre duas camas conjugadas. Mal deu por si, ainda esfregando os olhos vindos de uma noitada na Rua da Moeda, Inocência se viu nua e devassada na cama de Sílvio. Com o mesmo furor com que, quando de pileque, caçava uma mulher para a cama, Inocêncio a repelia ao acordar de ressaca e vê-la abandonada a seu lado. Com Inocência, porém, ele jogou o jogo da caça e da repulsa durante várias semanas. Foi o bastante para que ela cegamente concluísse: ele me ama e portanto posso com ele juntar meu destemor ao desejo de ser feliz. Mal teve tempo de contar as semanas, que ele esquecia, e ei-la novamente sem muleta.

A vida passa, a vida passa, e a cama alheia é uma roleta. Inocência seguiu jogando à deriva pelas noites de Recife. O jogo de ocasião e sem aderência humana que não fosse o mero gozo fugaz da carne, esse jogo ela jogou num transe de desmemória e vazio. Tanto o jogou e perdeu que um dia, voltando um olhar assustado para dentro de si, viu apenas um descampado, duas árvores ressequidas, sombras voláteis que a possuíam sem lhe marcarem a epiderme com um nome, um gesto de reconhecimento, um eco de palavra repartida no desafogo do ranger de camas.

Vou chamar você de Censinha, disse Tãozinho do Pandeiro enquanto alisava Inocência em meio aos lençóis revirados. Ai, pára de me chamar assim. Odeio meu nome, odeio essa coisa de brasileiro falando inho pra um lado, inha pra outro. A única coisa que amo no meu nome é o sobrenome: White. De onde vem, perguntou Tãozinho. Ah, suspirou ela, vem do meu pai Joe White, um americano de Nova Orleans. Como conheceu tua mãe? Foi num carnaval de Olinda. Depois, quando eu cresci, minha mãe falou que ele prometeu voltar antes de partir. Até hoje eu espero. Mas sei que um dia meu pai virá e então partirei com ele para os Estados Unidos. Vou ser feliz em Miami ou Nova York. Juro que nunca mais volto. Nunca mais esse povo atrasado, essa merda de terceiro mundo. Tãozinho: baixa a crista, vagabunda. Que merda tu pensa que é, porra? Inocência saiu na pancada, dando nó corrido na roupa rasgada, e foi parar no Hospital da Restauração.

E as águas se foram rolando sujas sob as pontes sem que Inocência cedesse um milímetro na ilusão cega de ser feliz. Foi por aí tropeçando, errando entre o bar e a cama, feliz como um clipe publicitário. Os homens vinham e passavam e as promessas de amor, cada vez mais frouxas, se dissolviam na neutralidade da carne votada ao gozo sem conseqüências. O poço foi gradualmente se abrindo, Inocência afundando como uma lata vazia presa a uma corda roída pela ação do tempo e do manuseio indiferente. Estava um dia lá no fundo, catando água para embriagar-se, quando uma mão firme puxou-a para o alto e lhe abriu a porta da casa de subúrbio. E assim foi ficando e gostando de ficar. A mão firme era parte de um corpo áspero onde ressoava uma voz dura e alta como um bater de martelo. E tudo isso, essa estranha promessa de felicidade e aconchego doméstico se condensava na identidade de um nome arrepiante: Zoca Porrada.

Ai, como ele me bate. Mas sei que bate por amor. Acho que é o modo dele, o único que aprendeu pra dizer que me ama. Também acho que é um jeito que ele precisou aprender dentro do duro exercício da profissão. Todo dia meu Zoca se arrisca nas ruas sujas e estreitas, na lama dos subúrbios, nos morros onde a droga e o crime rolam a toda hora. Zoca é forte e precisa ser forte pra segurar a barra da vida cega para essa chama azul da felicidade que somente eu vejo e somente a mim me queima. Por isso respiro felicidade em tudo e ela me embriaga nas noites sujas em que Zoca chega dando pontapé na porta e me quebra com a mesma brutalidade com que arrebenta pratos e o resto de louça usada da cozinha. Depois, cansado de lutar contra a vida e de me maltratar por amor, ele cai pesadamente na cama e ronca feito um porco pacificado. Então me deito a seu lado e, apesar do corpo e da alma feridas, eu fecho os olhos em estado de serena beatitude.
Lá no fundo da escuridão em que mergulho e me recolho vejo um paraíso de luzes brilhando, homens e mulheres lindos, de uma beleza assim grande me tirando o sono, e todos vivem no gozo e na felicidade para sempre. Sei bem do que estou falando, sei bem do lugar e das pessoas maravilhosas que habitam a escuridão iluminada dos meus olhos fechados ao lado de Zoca e seu ronco, de Zoca e seu cheiro de cebola crua. Esse mundo de sonho, que entanto é pura realidade, é a ilha da revista Caras, é o paraíso dos meus deuses que venero e invejo quando me sento na cadeira da cabeleireira do bairro. Um dia eu chego lá. Sem medo de ser feliz.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Microbiografia de Severo Machado


Já que doravante postarei neste blog alguns contos de Severo Machado, convém traçar-lhe com pincel grosso uma microbiografia que talvez concorra para torná-lo mais assimilável ao gosto ou pelo menos compreensão do leitor ocasional. É que Severo Machado, a simples menção do seu nome já me causa certo arrepio de rejeição, é demasiado negativo para os tempos publicitários em que vivemos. Costuma dizer que no Brasil é muito difícil ter caráter. Logo, decidiu pragmaticamente não ter nenhum. No entanto, ele em pessoa aparenta contradizer tudo o que escreve. Se nos contos é negativo, por vezes cruel, até brutal na visão e expressão da vida, convivido é um doce de pessoa, uma imagem afetuosa, alegre e até efusiva. Quando todavia digita um conto, Severo investe contra a realidade, contra os iludidos e fantasiosos, contra toda sorte de otimismo. Segundo ele, o otimista é apenas um pessimista mal informado. A definição é tão boa que duvido seja dele. Antropófago oswaldiano, Severo devora tudo que o fortalece. Logo, convém desconfiar da procedência de boutade tão engenhosa. Se parecer demasiado improvável ou imaginosa, sugiro que o leitor a coteje com a distinção proposta pela psicóloga Frieda Goldman Eisler entre o otimista e o pessimista: o primeiro foi amamentado por tempo prolongado, enquanto a amamentação do segundo foi prematuramente interrompida.

Severo é otimista enquanto ser de convívio, mas negativo enquanto escritor. Como explicar contradição tão desconcertante? Ele se explica culpando o Brasil, que vive como se fosse uma paixão inútil e insolúvel. Seu analista, Sugimundo Freuvo (favor pronunciar Froivo, pois é filho de um vienense que se perdeu no carnaval do Recife) inocenta o Brasil deslocando a causa da negatividade de Severo para sua biografia mais íntima, inconfessável e sobretudo inconsciente. Não fosse ela isso, inconsciente, como justificar os vinte anos de divã que Severo já pagou a seu analista? Para este, a raiz de tudo reside no romance familiar de Severo. Mal amado, para não dizer ignorado, pela mãe que o tratava como detento do presídio Anibal Bruno, Severo cedo aprendeu que o melhor lugar da casa era a rua. Não bastasse tanto, seu pai era doce e amoroso como se fosse sua mãe, enquanto a mãe era áspera e punitiva como os senhores de escravos nordestinos.

Infeliz como filho, Severo foi ainda mais infeliz no amor. Buscava nas mulheres a mãe que não teve. Encontrou apenas a namorada infiel ou a amada desalmada. Entre a família e o amor, ambos impossíveis, optou pelo curso de Direito (não confundir Direito com Justiça, com maiúsculas ou não) e acabou delegado de polícia num paraíso chamado Felicidade. Cansado de ganhar sem trabucar, trocou a delegacia pela literatura e logo descobriu que imaginar era melhor do que viver, que era mais fácil escrever contos do que reformar uma sociedade irreformável. Daí precisou de bem pouca imaginação para concluir que sua mãe, seu pai e todo seu retorcido romance familiar não passavam de produto de sua imaginação delirante. Por pouco não demitiu o Dr. Freuvo (que insiste na pronúncia alemã para que não o confundam com um frevo rasgado), a essa altura tão irreal quanto os fundamentos científicos da sua ciência.
Severo Machado era de esquerda quando todo mundo era de direita, ou pelo menos militante da maioria silenciosa. Agora Severo é de direita quando todo mundo não é nem uma coisa nem outra. Agora todo mundo é da maioria ruidosa. Não confundir ruído político, ou militância política, com ruído de festa, que é o que no presente se produz. No mato sem cachorro, que de caçador passou a caça privilegiada das mulheres, Severo refugiou-se no humanismo. Logo constatou que tudo que lhe restava era o humorismo, embora ninguém ache graça no que escreve. Consola-se afirmando que humor não é piada, isto é, Millôr não é chanchada.

E assim vai Severo pela vida. Castiga o Brasil através de personagens pavorosos, num extremo, ou carentes de compaixão, no outro extremo. O que intenta dizer em certas entrelinhas é que o Brasil é ingovernável e insolúvel. Embora afirme que o diz em certas entrelinhas, na verdade ele chega ocasionalmente ao extremo de dizê-lo nas próprias linhas dos seus contos. Já Dr. Freuvo pensa o contrário. Vai até mais longe, pois afirma que Severo tem cura. Basta continuar deitando no divã, desfiando sem pressa seu romance familiar. Um dia os conflitos se dissolvem, a luz da aurora pousa sobre o divã rangente de vendavais e terremotos familiares. Severo voltará para a vida e o Brasil com o ânimo e a visão de um brasileiro de sambódromo ou de Galo da Madrugada.

Severo espana a névoa da memória conturbada, salta num átimo dos labirintos da infância remota para a sala do analista e por pouco não estrangula Dr. Freuvo confundindo-o com a mãe que o abandonou. Mas civilização é repressão. Severo sabe disso, até porque, além de civilizado, é fiel leitor de Freud. Resta-nos agora conhecer aqui neste blog alguns dos seus contos, que hoje são reais. Já que costuma depreciar a inteligência do leitor, embora a dele esteja longe da imperfeição, Severo adverte o leitor desprevenido para as ressonâncias semânticas do trocadilho que vai dos contos aos reais. Não digo mais.

Nota – A foto que ilustra esta crônica é do carnaval de 2010. Severo define o carnaval como um estupro contra as normas da civilização. Sendo no entanto pernambucano, antes de tudo humano, Severo também cai na folia. Por conveniência, ou pura hipocrisia, ele se mascara para resguardar-se da opinião pública e da própria consciência. Como todo mundo, Severo paga sua cota de tributo à hipocrisia. Aliás, é tão hipócrita que ninguém tem como seguramente identificá-lo. Basta atentar para as máscaras sem rosto.
Fernando da Mota Lima
Recife, 12 de fevereiro de 2010.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Salinger e a Fobia à Celebridade



Salinger morreu há poucos dias. Embora romancista lendário, morreu com a discrição com que viveu em estado de olímpico isolamento durante décadas. Salinger foi a Greta Garbo da literatura. Este fato talvez tenha concorrido mais que qualquer outro para convertê-lo numa lenda literária inacessível aos abutres que espoliam a celebridade com a voracidade de um cafetão de ninfeta. A lenda que perdurou até sua morte, e agora com certeza gradualmente se dissipará, foi nutrida pela coerência tenaz com que, tal como Greta Garbo, preservou-se do público em estado de absoluto isolamento. Ironicamente, numa cultura regida pelo valor supremo da celebridade perseguida a qualquer custo, ironicamente é esta uma das armas mais eficazes para que se alcance a celebridade recusada. Quero dizer, o isolamento confesso e tenaz de Greta Garbo e Salinger conferiu-lhes uma aura de celebridade excêntrica bem mais poderosa e duradoura do que a dos célebres que se deleitam na exposição da fama.

Literariamente, foi graças à publicação de um romance que Salinger foi elevado à invejável condição de escritor célebre, objeto de um culto que atravessou incólume toda a sua vida. O romance, que todo mundo conhece, ainda que não o tenha lido, é O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye). Desde sua publicação, em 1951, o romance constitui uma evidência insólita de popularidade inalterável. Como tantos outros adolescentes viciados em literatura, li-o fascinado pelo culto que o cercava. Confesso que me decepcionou, tanto que me escapam argumentos esteticamente convincentes para justificar-lhe a fama. Talvez o erro fosse da minha percepção de leitor adolescente. Seja ou não este o motivo, estou muito velho e tomado por outras prioridades de leitura para ocupar-me em reler o romance de Salinger. Fixo-me assim na consideração de sua fobia à celebridade.

Confesso que o que mais me inspira admiração na biografia de Salinger é esse traço singular e tenaz de fobia à celebridade. Mais que admiração, ele me inspira inveja. Embora me meça, na minha obscuridade de autor de blog, como um amador desambicioso da literatura, seria hipócrita se acaso afirmasse que não dou importância ao fato de me lerem ou não. Pois a verdade é que eu, como de resto todo escritor profissional ou amador que conheço, eu preciso de que me leiam, preciso de que me concedam reconhecimento. Como escreveu meu poeta supremo,“ preciso de todos”. E notem que era um modelo de timidez e discrição. Aludo, claro, a Drummond, neste e em tantos outros sentidos o anti-Vinícius de Moraes.

À parte o exemplo de Salinger, cuja coerência sustentada durante décadas parece-me constituir evidência suficiente de sua aversão ou indiferença ao público, não sei de nenhum escritor que não aspire ao reconhecimento do leitor. Ainda quando autenticamente modesto, ainda quando avesso à fama, se é que se pode aludir à fama literária num pais onde tão pouco se lê, todo autor quer evidentemente ser lido. Do contrário, como explicar o fato de que se exponha em livro, jornal, revista, blog...? Aparentemente, apenas Salinger pairava indiferente ao desejo da celebridade literária, ou pelo menos ao desejo do reconhecimento literário. Mas ainda aqui caberia indagar: se não dava nenhuma importância ao público, se confessadamente encontrava no ato de escrever satisfação suficiente, por que então publicou outros livros depois que se devotou integralmente à vida reclusa?

Segundo uma anedota célebre, Kafka, pouco antes de morrer, pediu a seu fiel amigo Max Brod que queimasse seus escritos. Nunca levei a sério esta anedota. Elementar, meu caro Brod: se Kafka queria de fato queimar seus escritos, por que não o fez ele próprio? Variando o exemplo de humildade ou desapreço inconsistente com uma alusão biográfica, tenho um amigo que cultivou durante toda a vida esse mito da indiferença pela publicação, a indiferença pelo público. No entanto, além de narcisista consumado, um dos mais extremados e sedutores que conheci na sua expressão singular de narcisismo, modelou com astúcia e cálculo engenhoso toda uma mitologia à volta da sua obscuridade voluntária. Não bastasse tanto, cuidou de zelosamente datilografar e encadernar toda a obra que escreveu. Assim, convém que não me engane eu a mim nem muito menos eu ao suposto leitor desta crônica. Todos nós que escrevemos, ainda o mais sinceramente humilde, aspiramos no mínimo ao reconhecimento do leitor improvável, mas sempre desejado. Para além da rotineira vaidade humana, pulsa em cada ser que escreve o desejo, diria mesmo a necessidade de comunicação expressa em forma literária, talvez a mais alta forma de expressão e comunicação humana.
Fevereiro de 2010.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Boiação e Ruminação


O homem nasceu para boiar. Imagino o homem em estado primitivo, anterior a esse espantoso acervo de invenções e desenvolvimentos que se chama civilização ocidental. Vivendo então suspenso entre as águas paradas e a sombra das mangueiras, o homem prazerosamente descansava como uma força inútil da natureza. Sua felicidade primária, derivante dessa espontânea integração no seio dos elementos, exprimia-se no enlace concordante entre desejo e satisfação, entre a pobreza da imaginação desejante e a realização efetiva do desejo imaginado.
Alguns, de propensão mais filosófica, inscreviam na paisagem remota da natureza aquele ideal de repousada contemplação expresso num poema de Drummond: Um boi vê os homens. Ao invés de correrem sem saber para onde, de acumularem sem noção realizada de propósito e felicidade, como hoje inconscientemente procedemos, deixavam-se quietamente ruminando a vida isentos da aspiração de qualquer coisa que se pusesse além do sábio exercício da ruminação, além do sábio exercício da boiação. Repito: se nele houvesse alguma vocação para a sabedoria, o homem viveria boiando, ou ruminando no pasto como o sábio boi de Drummond. Os estóicos traduzem esse estado ideal de serenidade e harmonia dentro do mundo com uma palavra que venero: ataraxia. Julgo não trair o sentido essencial deste termo traduzindo-o como imperturbabilidade do espírito. Hoje o ideal dominante de felicidade aparenta confundir-se com o estado de perturbação do espírito, um estado de permanente tensão, ou movimento sem propósito.
Já que me entrego a uma representação puramente mítica da nossa condição, ou da condição que poderia ser a nossa, prendo-me ainda à argumentação mítica lembrando que o fator de ruptura dessa ordem de harmonia primária intervém com a figura mítica de Mefistófeles. Seduzido pela magnitude das possibilidades que este lhe descortina, cede o homem à tentação da conquista expansiva e se levanta da rede espantando e esmagando sob as botas civilizadoras a saúva e o formigueiro da roça.
Destacando-se da natureza, o homem rompe a cadeia da repetição alçando-se à categoria de agente dominador da ordem natural. O trabalho, que fora uma pausa necessária entre o descanso e a preguiça, converte-se em alavanca de transformação da natureza assegurando a acumulação de bens e de tecnologia posta a serviço da dominação dos meios naturais e sociais. Ao suspender seu estado de boiação sobre as águas e desatar o punho da rede em que improdutivamente se balançava, o homem ata o punho do seu semelhante ao trabalho escravo instituindo assim a injusta divisão social da produção e do usufruto dos bens. Dizendo tudo isso de outro modo, também metafórico, trocou a boiação pela opressão do outro e de si próprio, pois ao afogar o outro também de algum modo se afoga.
Empenhado nessa lenta progressão civilizatória, passa o homem a exaltar as virtudes do trabalho, sobretudo do semelhante a quem explora, condenando o ócio e a preguiça. Em suma, tendo nascido para boiar, o homem se rebela contra sua boiação originária e represa as águas para gerar energia elétrica. Foi assim que se divorciou da sua natureza aquática, diplomou-se em engenharia de minas e energia e inventou a psicanálise para boiar sobre as molas analíticas de um divã. E daí passou por uma perna de pinto, entrou por uma perna de pato. Senhor rei mandou dizer que nadasse quatro.

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Vida Breve e Texto Curto


Começo declarando que tento, a esta altura de minha vida já bem avançada, aprender a escrever acomodando minha escrita aos limites de uma crônica de blog onde o leitor ocasional busca o máximo de prazer num mínimo de leitura. Já que falo pelos cotovelos e escrevo com a ponta dos dedos formigando, custa-me agora reformar meu estilo de colunista de blog. Expressando meu drama com comparações mais respeitáveis, falta-me infelizmente a precisão e a economia verbal de um Graciliano Ramos, por exemplo. Além disso, os constrangimentos impostos pelo espaço impõem também limites aos temas que acaso me decida a explorar, melhor diria sobrevoar, nesta página. Depois de tudo considerar, concluí que seria apropriado dedicar esta crônica ao tema do amor.
Por que o amor? Ora, porque o amor contemporâneo não dura, é tão curto quanto o espaço e a duração desta crônica. Antes da revolução de costumes que se processou no mundo ocidental a partir dos anos 1960, o amor durava a vida inteira. Quero dizer, o que de fato durava era o casamento, não raro ajustado entre parceiros que sequer se amavam. Se dentro de suas rotinas inevitáveis brotavam o tédio e a infidelidade (masculina, bem entendido), sua duração era suficiente para que os amantes lessem toda a tradição literária anterior ao advento da televisão. Se querem uma explicação grosseira ou mesmo delirante para a atualidade de Machado de Assis, aqui a exponho de graça para vocês: Machado é atual por haver escrito romances compactos, compatíveis com o tempo restrito que reservamos à fruição da literatura. Quem hoje lê ainda aqueles romances intermináveis do século XIX, para não falar dos romances de folhetim, equivalente impresso da telenovela?
Assombra-me agora lembrar que na minha juventude li uma dessas obras de ponta a ponta. Era um romance de folhetim intitulado Maria, a Fada do Bosque e se desdobrava em três volumes contendo mais de três mil páginas. Quem hoje disporia de tempo para gastá-lo com uma obra dessas dimensões? Não me refiro à qualidade, já que todos os dias consumimos coisa muito pior hipnotizados diante da televisão e outros veículos audiovisuais. Além disso, o amor tornou-se não apenas volúvel, mas rotineiro. Há hoje tantas possibilidades de amor, tanta banalização do amor e da carne que em contrapartida falta-nos o lazer necessário para o exercício das grandes leituras. Sei que o leitor mais atento deve estar perplexo diante das relações explicativas que aqui esboço. Peço-lhe, no entanto, que culpe antes a brevidade da vida e da crônica e somente depois a estreiteza analítica do articulista.
Voltando ao espaço do blog, que nos impõe o metro do texto curto, seria hoje inconcebível a publicação de textos de maior fôlego, como era o caso da crítica de rodapé. Aliás, houve já quem com razão criticasse a inclusão de textos mais longos neste blog. Fica claro que comparo agora o espaço típico de um blog com o dos jornais da era anterior à universalização da mídia audiovisual. Era como crítico de rodapé que se projetavam na história literária nomes como Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Álvaro Lins, Antonio Candido, Sérgio Milliet, Otto Maria Carpeaux e uma infinidade de outros grandes críticos. Hoje qualquer um deles precisaria contentar-se com uma coluna de 600 palavras e 3.000 caracteres. Como estou já ultrapassando esta medida, aproveito para acrescentar que a vida é breve. Assim justifico o título da crônica. É fato que a medicina tornou-a mais longa, sobretudo para os afortunados que podem comprar no mercado a tecnologia e a medicação mais avançadas, mas o que são 90 anos de vida para quem aspira à imortalidade? Pensando bem, talvez conviesse retificar o título da crônica trocando-o por este: Desconversando.