sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Idade através das Idades


Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.

Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.

Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.

Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.

Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.

Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.

Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.

Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.

3 comentários:

  1. Texto mais que maravilhoso...falta pensar mais p escrever...

    Escreve mais.

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  2. Rose:
    Muito grato pela leitura, também pelo comentário, apesar de tão lacônico.
    Fernando.

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  3. Vai indo escrevo, estou trabalhando muito. O texto merece momentos de enlevo e , reflexão. Volto em breve.

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