domingo, 6 de março de 2011

A Cultura Brasileira e suas Matrizes



O cerne da cultura brasileira é composto pela interpenetração de três matrizes: a indígena, a portuguesa e a africana. Noutras palavras, o que há de mais definidor e característico na nossa cultura é fruto do encontro, do entrechoque e do caldeamento dessas três culturas. Disso resultou uma cultura nitidamente híbrida ou mestiça, como é aliás a regra na história das culturas. Importa todavia ressaltar que esse processo de caldeamento, de integração entre grupos culturais tão diferentes e até antagônicos não se realizou de forma harmônica. Essa é a representação que correntemente percebemos na nossa tradição conservadora, sobretudo nas representações oficiais da cultura brasileira. Bastaria lembrarmos as imagens e sons difundidos triunfantemente pela mídia durante o carnaval, expressão suprema dessa nossa cultura híbrida, multicultural, como reza o slogan publicitário oficial, e tão ruidosamente festeira.

O processo de caldeamento e mistura do qual resultou a cultura brasileira foi muito mais complexo do que nos faz crer a ideologia oficial do Brasil. Ele é resultado da colonização imposta por uma minoria de origem portuguesa inicialmente ao elemento indígena, habitante primitivo do que viria a tornar-se o Brasil. Num momento posterior ele inclui o africano trazido como escravo para formar a força de trabalho que construiu a nossa sociedade. Portanto, o processo de formação da nossa cultura nada teve de harmônico, nada de pacificamente integrador. Por outro lado, ele foi ainda mais complexo porque de fato concorreu para aproximar e integrar esses grupos antagônicos através do intercurso sexual, dominante na relação entre o elemento europeu e o indígena, depois entre o europeu e o africano. Daí resultou a extraordinária diversidade mestiça do nosso povo.

Mais que um processo de simples mestiçagem racial, nossa mestiçagem foi também cultural, já que integrou as três matrizes formadoras em processos sociais complexos que envolvem religião, linguagem, culinária, festas e muitas outras expressões humanas compreendidas pela cultura. O fato é que essa interação complexa e profunda entre o índio, o português e o africano formou as bases do que hoje é a cultura brasileira. Bem mais tarde, sobretudo a partir de fins do século 19, grupos culturais de outras procedências somaram-se à nossa cultura. É o caso do imigrante italiano, do japonês, do sirio-libanês, do alemão etc. No entanto, além de se concentrarem no Sul do Brasil, chegaram a um país cuja cultura básica estava já bem consolidada. Sendo assim, ingressaram na nova cultura muito mais integrando-se a ela do que modificando-a.

Nas páginas de Casa-Grande & Senzala, obra consagrada como a mais importante sobre a formação da nossa cultura, Gilberto Freyre descreve e interpreta o processo de choque e integração entre as três matrizes formadoras do Brasil. Ele demonstra, por exemplo, como as relações de antagonismo econômico e social foram contrabalançadas pelas relações sexuais que se estabeleceram entre os grupos. Dada a sua condição de povo dividido entre dois continentes, o português trouxe para o Brasil uma experiência de mestiçagem já bem sedimentada que se ampliou muito mais ao contato com o indígena. Mais exatamente, com a índia. Mais tarde a mestiçagem se aprofunda ainda mais com a chegada dos diferentes grupos de origem africana. Gilberto Freyre estuda não apenas esses processos de acasalamento, mas também suas consequências socioculturais.

Também Darcy Ribeiro, assim como muitos outros estudiosos, escreveu um livro importante sobre o assunto do qual me ocupo neste artigo. Refiro-me a O Povo Brasileiro. Existe no mercado um ótimo documentário homônimo, dividido em dez capítulos e baseado no livro. Dirigido e idealizado por Isa Grinspum Ferraz, constitui fonte muito importante para o estudo da formação da cultura brasileira. Além do texto, fornecido pelo próprio autor e por outras fontes fundamentais citadas no documentário, o filme é plasticamente muito bonito e enriquece através dos meios visuais a percepção e a diversidade das nossas matrizes formadoras.

O documentário ilustra muito bem o que antes estudamos como o conceito sócio-antropológico da cultura. Observando as imagens que retratam a cultura indígena, percebemos não somente sua riqueza, mas também sua autossuficiência. Dizendo melhor, a cultura indígena, fruto das necessidades decorrentes da relação que o índio estabeleceu com o ambiente em que vivia, compreende todos os aspectos primários e complexos observáveis em qualquer cultura. Além de prover seus meios de subsistência através da caça, da pesca, da domesticação de plantas adotadas para fins nutritivos, como é o caso da mandioca, ele criou no ambiente da floresta, nos trópicos de difícil sobrevivência, todos os meios necessários à existência de um grupo humano.

Quando aqui aporta, o português, limitado por sua visão etnocêntrica, como de resto ocorre em toda cultura - já antes observei este ponto num artigo intitulado Etnocentrismo, Universalismo e Relativismo - foi incapaz de reconhecer a riqueza e autonomia da cultura com a qual entrou em contato. Sendo assim, impôs ao índio os valores e práticas de sua cultura. A catequese imposta pelos jesuítas ao elemento indígena constitui talvez o melhor exemplo do contato entre culturas que resulta em choque e imposição. O que ocorreu, de fato, foi um verdadeiro processo de etnocídio, isto é, um processo de destruição das bases culturais do indígena pela imposição da cultura dominante, a portuguesa.

O português viu no índio, antes de tudo, um objeto de exploração econômica, já que sua ambição ao colonizar os trópicos era acumular riqueza. Daí a imposição do trabalho forçado ao índio. Como este resistiu tenazmente à escravidão, o português recorreu por fim ao africano, que aqui chegou já escravizado para garantir a reprodução da força de trabalho e da riqueza acumulada pelo português dominador.
Apesar da sua condição de escravo, o elemento africano foi tão decisivo na nossa formação cultural que Gilberto Freyre a ele se refere em Casa-Grande & Senzala como um autêntico agente civilizador do Brasil. De fato, é extraordinária a forma como o elemento negro marcou de forma tão profunda, tão indelével, uma cultura na qual ingressou como escravo, sofrendo, portanto, todos os horrores da escravidão durante séculos. Sua contribuição é nitidamente reconhecível em todos os aspectos significativos da nossa cultura. Apesar da sua condição subordinada, mesmo depois da abolição formal da escravidão, já que a abolição foi na verdade mais formal do que real, o negro formou e transformou a composição da nossa cultura através do trabalho, dos hábitos alimentares, das práticas religiosas, da linguagem, da sua espantosa energia de vida tão patente nas festas, jogos, nas expressões dionisíacas e mágicas de sua cultura.

Como antes observei, o processo de caldeamento das nossas matrizes culturais foi complexo e original. Através de meios tanto violentos quanto integradores, os grupos nele envolvidos criaram um país e uma cultura de características singulares. Um exemplo que ressalta nessa singularidade é o que diz respeito à nossa mestiçagem e à forma como se processam nossas relações raciais. Diferentemente dos Estados Unidos, onde as relações entre brancos e negros foi marcada pela segregação racial e linhas de separação bem nítidas, aqui no Brasil a escravidão misturou os polos antagônicos. Há uma expressão muito feliz que sintetiza a diferença entre Brasil e Estados Unidos com relação a esse problema. Enquanto eles, os americanos, são iguais, mas separados, nós somos desiguais, mas juntos. Explicando melhor essa distinção, lá os americanos criaram leis que asseguram a igualdade legal, mas mantém separados os brancos e os negros. Aqui não fomos capazes de instituir a igualdade de fato perante a lei, mas vivemos juntos, misturamos de muitos modos as nossas diferenças e antagonismos sociais.

Concluiria frisando que a forma como criamos meios culturais de expressão da nossa mestiçagem tem muito de positivo. Mas importa prevenir, mais uma vez, contra a representação integradora da nossa mistura na visão oficial ou dominante no Brasil. Ela nos representa como um povo portador de uma cultura mestiça ou híbrida cuja virtude maior reside na integração harmoniosa da nacionalidade. Essa imagem é difundida principalmente pela mídia e a propaganda oficial. Como acima salientei, ela é bem visível durante nossas grandes festas, notadamente no carnaval, na música e no futebol. Mas essa imagem idealizadora do país contém um avesso sombrio e violento suprimido pelos meios de comunicação de massa. Ela suprime as brutais condições de exploração do trabalho no Brasil, ainda herdeiras do nosso passado escravista. Ela suprime nossas formas dissimuladas de racismo e outras formas de opressão incompatíveis com um regime autenticamente democrático.

Importa ter em mente essa face dupla da nossa cultura, dividida entre a integração e o conflito cultural, para evitarmos uma visão parcial e idealizada da nossa cultura. Precisamos assimilar essa compreensão mais realista e complexa da cultura brasileira para, de um lado, melhor valorizarmos o que temos de bom, o que merece ser louvado e preservado; de outro lado, lutarmos para modificar condições de opressão e desigualdade que continuam mantendo o Brasil numa posição incompatível com uma sociedade verdadeiramente democrática, incompatível ainda com um país cuja economia passou a figurar entre as dez maiores do mundo. Portanto, nosso problema maior já não é o do subdesenvolvimento econômico que nos castigou por tanto tempo, mas o de uma mais justa distribuição da riqueza, o problema de uma autêntica democracia econômica e social. Enquanto não realizarmos esse ideal, continuaremos longe de ter motivos realistas para celebrarmos o país que somos.
Fontes complementares:
Além dos dois livros citados, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, recomendo também o documentário baseado no livro de Darcy Ribeiro e também citado no texto.

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