sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Lições sobre Hannah Arendt


As coleções ideadas pelos editores para servirem de pórtico ou introdução didática à obra de grandes escritores e pensadores são uma faca de dois gumes. O gume cego tende a embalar a inércia mental do leitor. Nos casos mais graves, quando este é também intelectualmente desonesto, corta o corpo da obra com gume alheio escondendo a arma do crime. O gume afiado, pelo contrário, ilumina a ignorância do leitor motivando-o a ir do comentador à obra comentada. Este é o mérito que antes de tudo destaco ao resenhar o livro 10 Lições sobre Hannah Arendt. Luciano Oliveira, o autor, condensa em dez lúcidas e transparentes lições o conjunto da obra de Hannah Arendt.

Ele começa ressaltando um fato animador: a trajetória ascendente da obra de Hannah Arendt no contexto da cultura brasileira, intra e extra acadêmica. De fato, como apropriadamente informa o leitor, o essencial da obra de Hannah Arendt é correntemente acessível ao leitor interessado. Leigos como eu, por exemplo, já leram Hannah Arendt, além de possuírem pelo menos parte significativa da sua obra. Além de desconcertar o leitor, não raro também indigná-lo, ela o ilumina, termo que Luciano Oliveira faz questão de sublinhar em certa passagem do seu livro.

Por que Hannah Arendt tanto desconcerta o leitor não relutando em afrontar suas convicções e pressupostos mais enraizados, também as verdades cômodas dentro das quais nos instalamos e assim aliviamos nossa consciência do fardo das interrogações éticas e humanas mais inquietantes? É por essas e outras, de resto bem esmiuçadas no seu livro, que Luciano, de mangas de camisa no convívio com os amigos e até inimigos mais cordiais, costuma brincar com Hannah Arendt chamando-a de “velhinha irritante”. Como todo humorista usa e abusa da hipérbole como figura de retórica, Luciano, sendo dos bons, não foge à regra. No caso de Hannah Arendt, porém, ele errou de figura retórica. Isso sugere o quanto ela, intransigente no exercício de pensar, excedeu as medidas convencionais da polêmica. Pois o fato é que mais de uma vez jogou contra o leitor tomada pela paixão de pensar isenta de qualquer tipo de concessão. E ao jogar, expondo-se a todos os riscos e reações éticas, políticas e epistemológicas, ela provocou algo que vai muito além da irritação do leitor contrariado ou contestado dentro dos limites que com frequência opõem o autor e o leitor, os sentidos ambíguos da obra e a recepção equívoca que no geral suscita.

No sentido acima indicado, o melhor do livro de Luciano concentra-se na sétima e na oitava lições, respectivamente dedicadas a Eichmann em Jerusalém e a “Reflexões sobre Little Rock”, incluído no volume Responsabilidade e Julgamento. Outras controvérsias em que Hannah Arendt se meteu são também consideradas pelo comentador. Estas, porém, notadamente a que envolve Eichmann e questões conexas, se inscrevem em contextos bem mais momentosos, para não dizer politicamente explosivos. Quando se ofereceu ao famoso periódico The New Yorker para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt escolheu mergulhar no olho do furacão. Luciano contextualiza e critica nos termos devidos esse episódio comparável ao Caso Dreyfus, que sacudiu a opinião pública francesa entre fins do século 19 e início do século 20 fixando de forma indelével na história da cultura a função pública do intelectual.

Não vou evidentemente reconstituir nesta resenha o processo que Luciano tão bem delineia e aprecia no seu livro. Minha intenção é tão-só recortar algumas questões mais relevantes contidas na obra e atadas ao contexto de que é fruto e efeito. Talvez a celebridade conquistada por Hannah Arendt graças à coragem radical do seu pensamento possa ser sintetizada na expressão que cunhou para traduzir seu juízo acerca do carrasco nazista Eichmann: a banalidade do mal. Esta expressão ganhou curso, provocou reações exaltadas e foi a extremos de ruptura de grandes amizades, como a que existia entre Hannah Arendt e Gershom Scholem. Friso, para o leitor apressado, não afirmar que a ruptura se deva apenas à expressão que anoto, mas ao fato de ela encapsular as reações extremas desencadeadas pela intervenção de Hannah Arendt no processo, que por certo vai muito além da pura qualificação jurídica.

Luciano escolheu com senso de propriedade impecável as epígrafes que encabeçam cada um dos capítulos do seu livro. No que tem por título “A banalidade do mal – Eichmann em Jerusalém”, ele recorta uma penetrante passagem de uma carta de Hannah Arendt endereçada a Gershom Scholem. Nela Hannah nega a radicalidade do mal. Noutras palavras, o mal é apenas “banal”, pois se manifesta na epiderme do mundo. O mal não teria o poder de se entranhar nas profundezas do mundo, apenas o bem. Portanto, só este é radical. Transpondo seu juízo para a personagem que desencadeou todo esse tumulto que ocupa Luciano e o leitor em geral, Hannah se põe literalmente diante de Eichmann, enjaulado sob a proteção de paredes de vidro transparente, e talvez chocada tenha constatado não estar diante de um ser demoníaco, um monstro inqualificável. Aliás, monstro é um substantivo que prescinde de qualificação.

Hannah Arendt mira, escrutina e devassa as linhas apreensíveis do carrasco e nada encontra além de um homem banal, um homem normal, um burocrata eficiente que se esmerou no exercício da sua função com zelo exemplar. Não é chocante ler isso quando ponderamos que o burocrata em questão coordenava a mais terrível operação de extermínio de um povo? Não é chocante pensar que Hannah Arendt, judia como o seu povo aniquilado em campos de concentração, escreve sobre um dos mais terríveis carrascos do nazismo qualificando-o apenas como um ser banal, um burocrata eficiente, decerto pai de família modelar? A propósito, George Steiner, outro intelectual judeu que estica ao limite a coragem de pensar, escreveu algo semelhante no seu livro Linguagem e Silêncio. Neste livro, assim como em muitas entrevistas e depoimentos, ele reitera esta verdade desnorteante: o oficial nazista que comandava os campos de concentração era um homem como eu e você. Enquanto durante o dia, servidor zeloso do regime a que servia, coordenava as operações de extermínio dos judeus, à noite, cercado pela família, lia Shakespeare e Goethe, ouvia Bach e Mozart, cultivava, em suma, a mais alta tradição da cultura humanista europeia. Logo, o humanismo sublime que tanto cultuamos não constitui nenhuma garantia contra a barbárie. Ponto.

Espremendo o sumo da verdade, ou antes da coragem de pensar o que poucos ousam, foi isso o que Hannah Arendt ousou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Mas Luciano nos lembra de que ela foi além disso, pois também introduziu na polêmica a colaboração dos judeus com os nazistas no processo de gradual extermínio do seu próprio povo. Esta variante do livro polêmico está bem documentada na introdução sumária de Luciano, que naturalmente não se estende além do devido. Durma-se com o barulho que essa “velhinha irritante” provocou no mundo e entre seu próprio povo. Gershom Scholem, assim como outros judeus indignados, não dormiu, mas com certeza perturbou o sono da velhinha irritantemente ousada. Como não imaginar que ela não tenha sofrido durante essas batalhas ideológicas tão momentosas? Afinal, ela sabia da radicalidade do amor, tanto sabia que foi capaz de continuar amando seu mestre, herói filosófico e amante: Martin Heidegger, nazista confesso que nunca se retratou. Amou ainda mais Heinrich Blüchner, seu marido devotado, com quem compôs, como dizia o amigo comum Randall Jarrell, uma monarquia dual. Ela amou a amizade com a integridade com que poucos o fazem. Bastaria lembrarmos o amor que devotou a Karl Jaspers, Hermann Broch e Mary McCarthy. Esta, a propósito, incluiu em Occasional Prose um belo e comovente obituário intitulado “Saying Good-bye to Hannah (1907-1975)”.

Como todos que ousam pensar o pensamento na sua radicalidade, ainda quando sabendo que não existe verdade absoluta, Hannah Arendt pagou a essa convicção o tributo que outros, antes e depois, pagaram e continuarão pagando. Penso, por exemplo, em Sócrates, epítome do pensador radical, Émile Zola e, entre os contemporâneos de Hannah, Bertrand Russell e George Orwell. Foram todos de algum modo punidos, além de transtornarem o léxico ideológico corrente. Talvez por isso Luciano inaugure sua série de epígrafes extraindo de uma entrevista a interrogação incontornável: onde situar Hannah Arendt ideologicamente? Conservadora ou liberal (no sentido americano do termo, conviria frisar)? Ela responde sem aparentar maior inquietação a respeito do assunto. Tanto que alega não acreditar que as questões do século em que viveu tivessem relação relevante com essas qualificações. Parece-me significativo registrar que, no obituário acima mencionado, Mary McCarthy a identifica como “conservationist”, termo que remete antes à ecologia do que à ideologia. Intentando ser fiel a McCarthy, esclareço que ela usa o termo no sentido seguinte: Hannah Arendt acreditava que devemos conservar tudo que já foi pensado.

Voltando à lição que dedica ao “Caso de Little Rock” , Luciano descreve com brevidade suficiente o que me parece sugerir o processo de pensar de Hannah Arendt, processo que acabava lançando-a no olho do furacão. Visando conferir precisão ao que segue, preciso acentuar brevemente que “O Caso de Little Rock” foi um episódio crucial na luta contra a segregação racial nos EUA. De que modo Hannah Arendt interveio? Ela simplesmente se perguntou o que faria se fosse a mãe de uma menina branca. Em seguida, o que faria se fosse a mãe de uma menina negra atirada - esta literalmente, a outra em termos hipotéticos - no cerne da batalha racial.

Ora, deixando de parte as respostas que propõe, e é aí que ela se encrenca com todos os bem e mal pensantes do mundo, o que ressalto é o fato de Hannah pensar o real com empatia. Esta é a forma mais radical de pensar, se podemos concentrá-la numa única palavra. Pois o que é o pensamento empático, senão esse procedimento com que ela própria ilustra sua atitude mental e política diante da realidade da segregação racial? O procedimento pode ser transposto para sua interpretação do totalitarismo, do nazista Eichmann, do comprometimento do seu mestre e amante Heidegger com o nazismo etc. Hannah pensava colocando-se imaginariamente no lugar do que pensava. É daí que me parece proceder a radicalidade do seu pensamento que projetou luz e entendimento no mundo, mas também irritação e ódio, fúria e rejeição. Pensar aderindo à perspectiva do outro, sobretudo quando este é o nosso avesso, é manifestação raríssima de liberdade e generosidade espiritual. É daí, suponho, que procede a radicalidade do pensamento de Hannah Arendt.

Não posso concluir esta resenha sem antes lhe acrescentar uma nota de frustração pessoal. Deploro o fato de Luciano simplesmente ignorar no seu estudo do conjunto da obra de Hannah Arendt o livro dela que é o meu favorito. Refiro-me a Homens em tempos sombrios. Conhecendo tão bem o autor, e portanto sabendo o quanto aprecia a literatura, causa-me certa estranheza o silêncio que aqui deploro. Afinal, ele também compartilha com Hannah Arendt um profundo apreço pela literatura, apreço que de resto se espelha na sua escrita tão avessa à padronização instituída pela cultura acadêmica. Espelha-se ainda na sua admiração de leitor fiel de Machado de Assis e Graciliano Ramos, que dele mereceram um volume de ensaios críticos. (Ver O Bruxo e o Rabugento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010).

Em Homens em tempos sombrios, como sabemos, Hannah Arendt reúne um grupo de grandes intelectuais marcados em circunstâncias variáveis pelos horrores do século em que viveram. A exceção é Lessing, poeta, dramaturgo e filósofo do século 18. Sua inclusão deve-se ao fato de merecer no ensaio de abertura do volume um tratamento equivalente ao de um contemporâneo dos demais estudados em seguida. Esse livro sobre o qual Luciano Oliveira infelizmente silencia revela os dotes extraordinários de Hannah Arendt como ensaísta consagrada ao ofício da biografia intelectual sintética. Retenho ainda na memória de minhas leituras desse livro as belas e comoventes páginas que escreveu sobre o caráter melancólico de Walter Benjamin. Não bastasse isso, e os horrores do século em que viveu, teve a infelicidade de estar sempre nos lugares errados.

Embora o título do livro seja extraído de um poema de Brecht, um dos artistas nele estudados, e o título bem a propósito condense a relação crucial entre o intelectual e o contexto histórico, a ensaísta é sensível aos traços distintivos que individualizam seus personagens (Abro parênteses, literalmente, para lembrar que o livro inclui dois capítulos sobre personalidades de natureza distinta: o papa João XXIII e Waldemar Gurian). Afinal, como ela própria ressalta, deles emana a luz, ainda que tênue, que nos anima a continuar vivendo e lutando quando a escuridão desce sobre as nossas vidas. É antes dessas obras e dos espíritos criadores excepcionais que lavramos um sentido para nossas vidas e para o mundo, bem mais neles do que em teorias e conceitos procedentes de outras fontes de saber e representação da realidade humana.
10 Lições sobre Hannah Arendt.
Autor: Luciano Oliveira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

3 comentários:

  1. Caro Fernando:
    Escrevo estas linhas apenas para explicar a ausência de "Homens em Tempos Sombrios". É que ele, embora apresentando textos impecáveis pela beleza e argúcia analítica, é "dispensável" num livro, infelizmente comprimido dada a sua natureza didática, destinado a apresentar o "pensamento" da autora; ou seja, embora também ilustre este último, o livro, até pela temática, não contém uma unidade analítica; não contém uma "tese" como as que caracterizam os textos finalmente escolhidos para serem apresentados ao leitor, entende?
    Luciano Oliveira.

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  2. Vicente Serafimsetembro 20, 2012

    Resenha admirável, caro Prof. Fernando! Quanto à ausência de "Homens em tempos sombrios", penso que os motivos pelos quais escolhemos ou dispensamos obras para os nossos feitos são vários, nunca imunes e sempre "justificáveis"... No entato, parece-me, há na explição do autor qualquer coisa de evasão, sobretudo no que diz da falta de "uma unidade analítica", falta de uma "tese". Ora, o rigor de um pensamento está, certamente, em sua fecundidade,isto é, em sua empatia,seu vigorar nas coisas do mundo... e, neste caso, talvez seja aquele livro (dispensado pelo professor Luciano Oliveira) um lugar indispensável, ou pelo menos privilegiado, para fazer ver ao leitor a consistência intelectual da "velhinha irritante", pois que nele ela certamente conserva sua unidade analítica, dando-nos não uma tese, mas o desenrolar de existências, de vidas, que dão-nos teses a ver, a pensar. Será que a escolha do autor - dispensar os "homens em tempos sombrios" - não traduz, ao final, uma certa distinção entre pensamento e vida (grosseiramente falando), ainda que, pelo que ouvi dizer, diga ele primar pelo "mensamento com carne"?

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  3. Meu caro Vicente,

    Obrigado pela exclamação inicial! (Como vê, retribuo-a.)
    O diabo nesse tipo de diálogo e/ou debate é que a gente tem sempre de estar se explicando.
    Aí vira um parafuso aluído.
    Lembra-me, por vezes, a imagem do "hamster" na roda sem fim...
    Por isso tenho sempre como princípio não discutir meus textos.
    Eles que se defendam!
    Mas, enfim, em atenção aos comentários, que agradeço, venho explicar outra vez que "Homens em Tempos Sombrios" seria algo como uma "aplicação" da mundivicência (ou deveria dizer "weltanschauung"?...) de Arendt aos autores que comenta. Por isso considerei-me dispensado de incluí-lo no meu destretensioso livrinho.
    Isto dito, fiquei intrigado com o conceito de "mensamento".
    Seria isso mesmo? Ou seja: novo conceito em moda que desconheço, ou simples erro de digitação?...

    Muito atenciosamente,

    Luciano Oliveira

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